Natal na casa da minha avó, na rua 24 de outubro, sempre foi o acontecimento do ano. Tios, primos, netos, sobrinhos, pais, irmãos, recém-casados, ou até recém-namorados, davam uma passada no número 638. A ceia sempre daquelas: perus (mais de um pra não dar briga por causa das coxas), Tender, pernil, farofa, maionese, arroz branco e à grega, rabanada, panetone, frutas à gosto. Engraçado que eu tinha a sensação que brotavam cadeiras, pois tinha a turma que ficava na sala de visita, tinha a turma que ficava vendo a missa do Galo na sala de TV, tinha a turma que rodeava a mesa da ceia para dar uma beliscadinha, tinha a turma fazendo os quitutes finais na cozinha. Era tanta gente, tanto pra lá e pra cá, que o lugar mais procurado não era perto da árvore de Natal, era o banco que vovó colocava na calçada na frente da casa. Pelo simples fato de não querer perder nada do que estava acontecendo na rua. E acontecia muita coisa na 24 de outubro. Não existia uma porta fechada. Na frente morava Dona Maria Gonçalves, que, como a minha avó, teve 12 filhos. Muitos netos são, inclusive, netos em comum. Mais pra cima, ao lado da Tempore Moda Masculina, tinha a casa de Dona Maria Auxiliadora, que também era cheia de filhos. A correria era generalizada. Um entra e sai sem fim entre as casas. Era pega-pega, era futebol de latinha, era guerra de mamona. As mães loucas porque os filhos estavam sujos, os pais dando risadas de antigas piadas, os tios jogando truco ou escopa. Depois da meia noite, chegavam os amigos dos netos, os gêmeos Marcio e Marcelo, Cachorro Louco, Júlio Gordo, Lauro, os guardas da rua, os transeuntes moradores da praça Clóvis Cardoso. Todos, absolutamente, saiam de barriga cheia e alma lavada. Natal na casa de Vovó era uma energia única. Uma energia, uma alegria, uma tradição que foi começando a acabar, mesmo antes da morte de papai. Primeiro muitos carros na rua, para de correria crianças, tá perigoooooso. Depois, colocar o banco pra fora já não era seguro. Depois, vamos trancar as portas. E assim foi indo. Esse ano nem teve. Passar dia 24 à noite, em frente da casa e vê-la fechada, sem luz, sem o banco na calçada, dá um gostinho de quero mais. Ver a placa de vende-se, então, é uma facada que sepulta as esperanças de poder reviver aquela nostalgia da 24 de outubro algum dia. Hoje uma rua morta. Gentrificada. Cheia de alarmes. Cheia de vitrines. Cheia de vazio. Vazio de vida.
Uma rua triste. Simples assim.
Muito diferente onde é a nova casa da minha avó. Estância Tarumã é rodeada de árvores, tucanos, galinhas, araras. Uma chácara que ela mesmo escolheu a dedo. Tal a qual a casa que comprou de seu Gabriel Brasil na 24 de outubro, na década de 50. Às vezes, no auge de seus 94 anos, ela pergunta da casa.
– Tá tudo bem, Vovó. Tá lá inteira.
– E quem tá cuidando dela? É Jonas?
– É sim, vovó.
– Tem que avisar ele pra ver as telhas que começou a época das chuvas.
Francisco interrompe a conversa pedindo mais suco de Tamarindo. Meus sobrinhos/primos Bia e Manuel pulam no colo da Bisa perguntando porque o cabelo dela é tão branco. Uma buzina toca ao longe, é o meu tio Everaldo chegando de Sorriso com a caçamba cheia de milho verde. Seu filho Gabriel abana de longe. O ser humano e seus ciclos. Fecha-se uma porta. Deus abre 20 janelas.