Cidades

Especialistas elencam lições não aprendidas na primeira onda

Quatro mil trezentos e vinte. Esse é o número de vidas perdidas para a Covid-19 em Mato Grosso graças a desorganização política, descaso com ciência e medidas de prevenção ignoradas, segundo especialistas da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Mesmo com a pandemia chegando a completar dez meses no Estado, lições passadas ainda não foram aprendidas, apontam. 

 

São 4.320 cuiabanos, varzeagrandenses, rondonopolitanos, matupaenses e outros tantos cidadãos dos mais de 140 municípios do Estado que deixaram seus filhos, pais e amigos durante a pandemia.

 

O número, além de indicar uma triste realidade para muitas famílias, representa um dado preocupante, que coloca Mato Grosso como o terceiro estado mais afetado pela pandemia na região Centro-Oeste e o quarto do Brasil com a maior taxa de óbitos a cada 100 mil habitantes, de acordo com a Fiocruz.

 

Com a quantidade de casos e mortes em crescente retomada, foi entrevistada a professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Ana Paula Muraro, e a infectologista Marcia Hueb para saber o que Mato Grosso ainda não está sabendo lidar nessa “segunda onda” da pandemia. 

 

Para Hueb, a população se ilude ao pensar que estamos passando por uma segunda onda, quando na verdade nem saímos da primeira.

 

Apesar das evidências, as especialistas afirmam que medidas básicas de combate ao vírus estão sendo ignoradas, como orientações claras por parte dos governantes e a adoção do distanciamento pela população.

 

Listamos abaixo os principais aspectos levantados pelas especialistas e que precisam ser levados em consideração, tanto pelos gestores públicos quanto pelos matogrossenses, para que o momento seja menos fatal.

  

Desorganização política

“Definitivamente, não aprendemos que as medidas de prevenção para a população devem ser feitas de maneira coordenada entre as esferas governamentais”, aponta Ana Paulo Muraro. A falta de movimentos coordenados entre os gestores municipais e estaduais gerou, de fato, conflitos e atrasos no combate ao coronavírus, enquanto vidas eram perdidas. 

 

No início da pandemia, o prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro (MDB), e o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes (DEM), protagonizaram atritos na decisão de medidas de isolamento e protocolos de restrição. 

 

O procurador-geral de Justiça de Mato Grosso, José Antônio Borges, chegou a pedir para que os dois deixassem de lado a disputa de poder para prezarem pelas vidas dos cidadãos. 

 

Se a crise política prejudica a tomada de decisões eficientes para a área da saúde, a falta de transparência e de metas claras também não contribui em nada. É o que indica a infectologista Marcia Hueb. 

 

“A sociedade fica desorientada. Os governantes não estão mais orientando, mostrando seus planos para a vacinação e alertas de não aglomeração. Estão agindo como se estivéssemos em situação de tranquilidade. De fato, não estamos”, argumenta. 

 

Na última semana, Mato Grosso chegou à quarta posição entre os estados com a maior taxa de óbitos. São 119,53 mortes a cada 100 mil habitantes, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O Estado fica atrás somente do Rio de Janeiro, Distrito Federal e Roraima, com quem está praticamente empatado. 

  

Medidas de prevenção ignoradas

Festa com centenas de adolescentes em Cuiabá. Show com outras dezenas de pessoas aglomeradas em Sapezal (a 559 Km de Cuiabá). Esses foram registros de descaso entre os meses de novembro e dezembro diante do aumento de casos e mortes em Mato Grosso. E não são os únicos exemplos.

 

Seja em qualquer município, basta andar pelas ruas boêmias da cidade para observar focos de aglomeração e medidas de prevenção sendo ignoradas. 

 

“Há uma tendência de todos nós a aprendermos o que nos convém e ignorarmos o que nós não queremos. Então, definitivamente, nós não aprendemos que o distanciamento e o uso da máscara são fundamentais para reduzir ou acabar com a transmissão do vírus. Quer dizer, podemos ter aprendido na teoria, mas não exercemos na prática”, afirma Hueb. 

 

A taxa de circulação em Mato Grosso voltou a patamares de períodos anteriores ao isolamento social. Bares e restaurantes, farmácias, mercearias, parques, pontos de ônibus e locais de trabalho tiveram aumento de mobilidade. Os dados são registrados pelo Google Maps, que monitora o fluxo de pessoas, e compõem o Relatório de Mobilidade Comunitária da Fiocruz. 
 

Desmobilização precoce na saúde

Nem tudo está perdido. De acordo com Muraro, a rede de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS) está mais preparada com os protocolos de atendimento e com o conhecimento sobre a doença. “Temos capacidade técnica nas vigilâncias epidemiológicas municipais e do Estado para o controle e acompanhamento de casos”, afirma. No entanto, há ressalvas. 

 

Caso o número de infectados aumente rapidamente, como já vem acontecendo, é possível haver um novo colapso da saúde no Estado. Isso porque os leitos exclusivos para atendimento dos pacientes com Covid-19 sofreram reduções ao longo dos meses de estabilidade dos números. 

 

Outro fator que gera preocupação é a concentração de leitos no Estado. Na Baixada Cuiabana, há grande quantidade de vagas, mas devido ao constante fluxo de pacientes dos municípios próximos, o atendimento fica comprometido. “Enquanto isso, a região de Barra do Garças atende 10 municípios, totalizando mais de 100 mil habitantes, e disponibiliza apenas 9 leitos”, ressalta Muraro. 

 

“Não podemos perder de vista que não saímos da pandemia e que as oscilações de números de casos novos não nos permitem a tranquilidade diante de uma calmaria aparente”, reafirma Hueb. 

  

Ciência em escanteio

Em todas as novas doenças que surgem, o conhecimento científico carece de informações específicas no início e, ao longo do tempo, vai se aprofundando em pesquisas e conhecimento. Com o coronavírus não foi diferente. 

 

A ciência foi uma importante aliada em 2020 e mostrou-se necessária para enfrentar um dos maiores problemas de saúde pública da história, segundo Muraro. Para ela, o Sistema Único de Saúde (SUS) também despontou como fundamental no acolhimento e socorro às vítimas. 

 

Foram diversos os estudos e projeções que ajudaram a sociedade e os gestores a passar pelo período com menos turbulências. Mesmo assim, muito disso foi deixado de lado. 

 

Aqui em Mato Grosso, kits de medicamentos que, supostamente, tratam a Covid foram distribuídos para a população. Só até setembro, mais de 12 mil kits contendo Azitromicina, Cloroquina e Ivermectina haviam sido entregues. Nenhum possuía comprovação científica.

 

Os profissionais de saúde do Estado também denunciaram a compra de materiais de proteção da China de baixa qualidade, colocando-os ainda mais em risco de contrair o vírus durante o trabalho.

 

Para a infectologista, o monitoramento das informações e atualizações na saúde precisa ser feito por profissionais que dominam a área. “Não adianta investir em testes que não dão diagnóstico da doença ativa ou investir em medicamentos que não tratam a Covid. Os recursos devem ser administrados com transparência e justificativa para o que de fato funciona”, reforça. 

 

O alerta feito agora pelas especialistas é em relação ao risco iminente de colapso no sistema. 

 

Olhos fechados para exemplo estrangeiro

 

Como aconteceu no início do ano, não estamos olhando para o crescimento de casos lá fora e tomando medidas de contenção por aqui. A segunda onda da pandemia toma conta da Europa desde o final do mês de outubro. 

 

Se o exemplo estrangeiro pode parecer distante, então basta olhar por aqui. Esta semana, o Brasil voltou a superar a marca de mil vidas perdidas diariamente.

 

Em Mato Grosso, os leitos de UTI estão se esgotando progressivamente. Pelo menos 5 regiões do Estado se já estão ou se aproximam da ocupação máxima, como Sorriso, Rondonópolis e Nova Mutum. 

 

Os leitos em UTIs para adultos possuem uma taxa de ocupação de pouco mais de 40%. Já os leitos pediátricos estão com taxas superiores a 50%. 

 

Hueb faz um último alerta: “Não podemos jogar um jogo inteiro dentro das regras e perder na prorrogação. Esse ano é um ano de esperar, conviver em família e quem sabe possamos estar juntos num próximo Natal. A pandemia ainda não acabou. Nada supera o valor da vida. Nós não vamos repor as 180 mil pessoas que morreram pela Covid.” 

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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