Dos seis últimos presidentes que tivemos metade tinha extremo zelo pela liturgia do cargo, além de incomum elegância na fala. Pudera! todos têm excelente nível cultural e também são experimentados escritores: o Sarney (o primeiro deles) é um bom romancista e ótimo contista; o Fernando Henrique (segundo) publicou vários livros de sociologia e política; e o Temer aventurou-se discretamente na poesia.
Contrastando com os três citados temos Color, Lula e Bolsonaro. O refinado caçador de marajás gabava-se de ter “saco roxo”; Lula, elegantemente, dizia sobre a gravidez da esposa no primeiro mês de casamento: “pernambucano não deixa por menos” e o amável Bolsonaro quer encher a boca dos jornalistas de “porrada”.
Além de dar “porradas” o atual governo agride a língua pátria. A Secom, nesta semana, atropelando a regência, divulgou uma nota onde reproduz uma fala do Presidente Bolsonaro sugerindo que a vacinação contra a covid seja opcional: “o governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros”. Ora, o verbo “prezar” é sinônimo de “valorizar” e ambos são transitivos diretos. Creio que o redator confundiu “prezar” com “primar” este último, sim, transitivo indireto, sinônimo de destacar-se.
Se não bastasse esse tropeção, vem ainda a Secom, ignorando a concordância verbal, afirmar em nota: “pesquisas revelam que cerca de 90% dos brasileiros tomará a vacina…” O advérbio “cerca” não tem o poder de atrair a concordância do verbo tomar, que neste caso deve ficar no plural. Claro que estes erros não teriam a menor importância se não fossem originários de um órgão de comunicação que tem a obrigação de conhecer a língua, sua principal ferramenta.
Mas tudo que foi escrito até aqui é perfumaria ou encheção de linguiça do colunista para chegar ao ponto principal deste texto: o Brasil sofreu, nesta semana, mais uma “bolsonarada”.
Sem nenhum motivo aparente, o Presidente resolve desincentivar a adesão à vacinação da covid-19, que ainda nem começou. Dizendo que “ninguém vai obrigar ninguém a tomar a vacina” ele mostra desconhecer a lei brasileira que diz o contrário e põe em risco a meta de alcançar a imunidade coletiva, necessária para retomarmos em segurança a atividade econômica.
O interpretador oficial dos discursos intempestivos do Presidente – General Hamilton Mourão – apressou-se a amenizar as palavras, afirmando que a intenção era dizer simplesmente “ninguém vai pegar à força alguém para ser vacinado”. Claro que não vai, mas há diversas formas de obrigar a população a imunizar-se, tais como exigir a carteira de vacinação na matrícula escolar ou atestado para viajar, como já é feito hoje para várias doenças.
Não custa lembrar que nesta volta do sarampo ao Brasil através de migrantes venezuelanos, equipes de saúde pública foram às casas das pessoas para vaciná-las compulsoriamente.
Alguém pode dizer que as pessoas tem o direito de recusar a vacina. Pode até ser, mas como se trata de um interesse coletivo, este deve prevalecer sobre o individual e ninguém tem licença para expor outros ao risco.
É uma irresponsabilidade ignorar que a varíola foi erradicada através da imunização coletiva e que a paralisia infantil está sob controle por conta da vacinação obrigatória.
Renato de Paiva Pereira – empresário e escritor