Pouco antes do amanhecer da terça-feira do dia 27 de agosto, sonhei com Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Para mim foi uma baita surpresa. Rotineiramente, antes de dormir, registro na mente algumas das principais tarefas que terei que fazer no dia seguinte, até mesmo o cardápio do almoço. Mas, naquela terça-feira, minha lista mental de afazeres encontrou a deleitosa desordem. Foi atravessada por tentativas (sem sucesso) de obter respostas sobre o significado do sonho e o porquê de Lévi-Strauss estar lá.
Ainda que tenhamos trocado cartas entre 1999 a 2008, não me contenta pensar que seja esta uma das respostas às minhas inquietações oníricas, mais especificamente a razão de estar com Lévi-Strauss pelas ruas de Paris. Grosso modo, justifiquei o sonho pelos escritos Edgard Roquette-Pinto e Claude Lévi-Strauss: olhares de estranhamento sobre os índios Nambiquara (2007), O Dom Quixote da antropologia (2018), Katukolosu: um grande pajé, (2020, Prêmio FLIP), A cidade permitida: olhar de Lévi-Strauss para Cuiabá (2020), escrito em coautoria com Flávio Gatti e, por último, A máquina de escrever de Lévi-Strauss (2020).
No sonho, coberto de um matiz da cor cinza, os lugares por onde andaram suas sequências sem efeitos cênicos, mas nem por isso eram carecentes de movimentação, de emoção, de reação intensa resultantes da possiblidade de estar com Lévi-Strauss. As ruas parisienses encontravam-se abarrotadas de gentes adultas. De minha parte, por ser pega vez por outra pelo estado de claustrofobia, dificilmente estaria naquele ajuntamento excessivo de pessoas, num corpo a corpo sufocador. Mas, lá estava eu, ansiosa por encontrar Lévi-Strauss.
De repente, sem qualquer expectativa de avistar o francês que detestou a baía de Guanabara, um empurra-empurra nos colocou frente a frente. Ele me pareceu muito alto, mais do que o desenho de minha imaginação fizera. Lembro-me de que olhei bem para cima a fim de alcançar seu rosto, sem os óculos e sem a barba que deixou crescer em algumas das expedições ao interior do Brasil. Ele usava um sobretudo abaixo do joelho. Ainda que desabotoado, ocultava as roupas que vestia sob o agasalho, de tecido leve, de um cinza discreto, do tipo que guarda segredos. Ao nos olharmos, me identifiquei: “Sou Anna, de Cuiabá”.
E, sem dizer palavra alguma, colocou seu longo braço em torno do meu ombro. A passos largos, deixamos a multidão. Em um ambiente fechado, talvez um quarto de hotel, avistei a mulher de Lévi-Strauss, de aparência bem mais nova do que o famoso antropólogo estruturalista. Com base em fotografias, verifiquei que aquele rosto não era de Diná, Rose ou Monique. Seus cabelos lisos, fartos e negros estavam repartidos ao meio, à moda Chanel. A mulher bonita, silenciosamente, arrumava uma mala enquanto eu acordava com as primeiras luzes do Sol penetrando as frestas da janela.
Aquela terça-feira do dia 25 de agosto e os subsequentes não me trouxeram significativas interpretações que esperava ter do sonho. Talvez nosso encontro tenha se dado para demonstrar que mesmo em dias desencantados e sombrios em que se passa a humanidade (representada pela multidão que o esperava), precisemos deixar o estado “anti-sonhador” ou “anti-onírico”, preocupações de Gaston Bachelard (1884-1962). No mundo pós-moderno, por onde cada um de nós está a caminhar, é excessivamente valorado pelo tempo quantitativo, retraído no tempo presente, que despreza o sentido da duração e do instante…
Em 2006, com 96 anos, a preocupação de Lévi-Strauss, unida a de Bachelard, foi perceber a “velocidade e a escala das transformações tão intensas que qualquer tentativa de previsão fica marcada pela incerteza. De fato, estamos vivendo uma época radicalmente diferente de tudo o que o ser humano viveu até aqui.”