Diferenças sociais, territoriais e econômicas e o que nos move em liberdade, talvez em 2020, não esteja no que aprendemos a dimensionar como ponto exato. A impressão é que ficamos no meio do caminho. No romance A ignorância (2000), do escritor checo naturalizado francês, Milan Kundera, nascido em 01 de abril de 1929, logo atualmente com 91 anos, a história central mostra, entre outras coisas, Josef e Irena que passam vinte anos separados e longe de sua terra natal.
Memória e nostalgia acompanham aquilo que se dimensiona como retomada, sentimento e o que se precisa refazer constantemente no percurso. O livro abre com um diálogo entre amigas, uma que está quase a viajar de volta a sua cidade natal, Praga, e uma outra, francesa, que permanece e diz a Irena: “Será seu grande retorno”. Na mesma página, o narrador nos lembra que “Em grego, retorno se diz nóstos. Álgos significa sofrimento. A nostalgia é, portanto, o sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar”.
Mais adiante, em uma passagem do romance, num encontro que programa para rever as antigas amigas e celebrá-las com festa, oferece garrafas de Bordeaux de safras especiais. Não entende, contudo, porque as amigas não se servem. Uma delas, mais simples, diz preferir cerveja, e as outras nesse compassado de sinceridade também resolvem pedir ao garçom o mesmo. Irena se vê em uma estupidez de gesto do ausente: sua imposição de estrangeira com caixa de vinho Bordeaux.
2020 certamente nos põe em contato com uma história do que foi possível: Viver. A nostalgia do querer o antigamente terá que conviver com o que foi eclipsado: pessoas que desapareceram, de nossas vistas, em todo o mundo. Por toda a parte, mais restritos geograficamente nas andanças por agora, o último refúgio do que consta como inseguro, assegurou uma escolha para pensar no território e no existir. Provavelmente, não é uma vida que se diz separável da música, da pintura ou da literatura por se dizer que, em tais áreas, não há situações que combinem com o lugar estabelecido pela segunda-feira que se inicia toda semana.
Quem nos tornamos quando não estamos nos espaços físicos de domínios do trabalho, do convívio social e do consumo serve de uma boa matriz ao que ressoa de nós. Formas de se repetir e como olhamos o existir em: acordar, sentar, comer, deitar, dormir, acordar e, só respirar. Não aguentamos mesmo o exato ponto da suficiência. Daí, compramos pãozinho e outros badulaques da esquina de casa até chegar do outro lado da via. Somos, muitas vezes, estrangeiros diante daquilo que gostamos.
E o que se deu foi um abandono do "lá fora" para mostrar nossa vida nua aqui dentro. Qual o grau de importância de cada cotidiano recoberto pelo relógio de uma pandemia mundial? Um sentido preenchido pela passagem do tempo emaranhado de compromissos inadiáveis completamente riscado do mapa. De 2000 à 2020 temos vinte anos da escrita de A Ignorância, por Milan Kundera. Irena, personagem central do romance, é alertada por uma das amigas que reencontra em Praga que “o retorno não é nada fácil”. Aqueles que ficam não conseguem entender que partimos de casa sem nenhuma esperança de voltar. A vida é de caminhadas. E, talvez, por isso a amiga de Irena suaviza essa nostalgia que carregamos das mesmas coisas dizendo: “Nos esforçamos por nos fixar no lugar onde estamos”.
Eis que nos achávamos seguramente não primitivos e presumimos uma forma não falível de viver, de forma programada, cada dia deste ano. Não foi possível, pois tudo é móvel e pode ser remexido.
Por Rosana Campos Leite Mendes
Doutoranda em Literaturas e Práticas Sociais (UnB)
Mestre em Educação (UFMT)