Texto e foto de Valéria del Cueto
Dobrou a esquina procurando espaço aberto em direção à praia. Mas não chegou a atravessar as pistas. Justo naquela rua não havia sinal nem faixa de pedestres que permitisse a passagem segura para a orla.
Pegou o calçadão caminhando no desenho das pedras portuguesas, um dos patrimônios paisagísticos de Burle Marx na cidade maravilhosa, cartão postal do Rio de Janeiro.
Naquele trecho não havia bancos para descansar contemplando a vista, somente as árvores que se esparramavam em desenhos inesperados correndo atrás da luz do sol, derramadas sobre a calçada.
Era um dia que ficou azul. Começou cinzento. O vento afastou a bruma e mudou o humor das nuvens, reverberando o contraste do caminho. De um lado a natureza, céu, mar, areia, praia. Do outro, concreto e a mão do homem, no trabalho maravilhoso do paisagista sob os pés da muralha de prédios da Avenida Atlântica, em Copacabana.
Carros estacionados, ao longe moradores. Os de rua perambulando, os dos prédios passeando seus cachorros, turistas… tudo igual naquela quarta-feira, início de março.
O olhar que vagava na mesmice do verão pós carnaval foi atraído por um conjunto de elementos incomuns na paisagem. Vários elementos.
Ter caçambas recolhendo material das obras em apartamentos da orla não era incomum. Cercada de catadores que nos containers garimpavam tesouros, inclusive. Mas aquela espécie de burro sem brabo malocado no emaranhado de troncos distorcidos entre um grupo de árvores era incomum.
No carrinho de ferro uma pilha de pedaços de corpos rígidos, brancos e cores da pele. Pernas, braços troncos e nádegas amontoadas. Tudo, menos as cabeças. O brilho da superfície fria dos manequins contrastando com o formato orgânico, caótico dos troncos e o corte irregular das pedras portuguesas.
Enquanto explorava os objetos, rodeando a “instalação”, uma imagem delirante de sobrepõe. Os corpos passaram a serem reais, ali amontoados!
Buscou avidamente alguém no entorno. Procurava explicação para o conjunto ali exposto. Não viu ninguém. É como se o mundo tivesse parado, esvaziado.
Para se convencer de que a visão dos corpos reais era apenas ilusória, talvez efeito do vinho consumido no almoço na Trattoria, ali atrás, racionalizou. Raciocinando, não podia ser real o seu delírio porque faltava sangue! Duas piscadas depois os corpos desnudos voltaram a ser apenas bonecos inanimados. Sem cabeças.
Mais uma vez deixou o olhar vagar procurando quem explicasse os adereços surreais naquele lugar.
Uma mulher se aproximou observando a pilha de corpos imóveis inquirindo. “Serão de quem?” perguntou, observando os corpos em vários ângulos antes de explicar. “Se tivessem cabeça até me interessava”.
“Quer comprar?” A voz vinha do nada. Tirando o cachorro que arrastava o dono que dobrava a esquina ao longe não havia viva alma no calçadão. Depois de hesitar, a mulher conversou com o vazio perguntando a origem dos corpos mutilados. “Preciso de cabeças, por acaso não tinha por lá?”
Do alto dos galhos das árvores a resposta veio ligeira. “A Gente pegou o que tinha. Era tudo isso aí. Que comprar? “Só queria as cabeças”, respondeu a interessada. Como não tinha, seguiu solitária pelo calçadão enquanto o observador silencioso rodeava o grupo das árvores em busca de ângulos inusitados dos objetos em cima do burro sem rabo.
Do galharia novamente a oferta. Dessa vez para o dono do cachorro que veio chegando. Puxava o “chefe” pela coleira. Se aproximou para farejar as rodas do carrinho. Não foi só a ele que a visão causou uma sensação estranha.
Como sabia o texto do diálogo que aconteceria e já esgotara as possibilidades fotográficas, seguiu o seu caminho em direção ao posto 6.
Carregado pela nuvem etílica que o embalava, esqueceu o material capturado e do estranho diálogo. Perdido num sonho delirante, uma miragem ilusória do último passeio antes do início do afastamento compulsório definido pelo vírus.
Duas ou três luas de isolamento provocado pelo flagelo da Covid-19, remexendo nos arquivos ressurgiram as imagens. Uma premonição visual do que acontecia na vida real.
Foi aí que veio à memória a pergunta que não deveria calar, o enunciado do enigma que desafiava a humanidade.
“Quer comprar?”
*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador”, do SEM FIM… delcueto.wordpress.com