Jurídico

Processo demonstra evolução no Direito em relação aos filhos fora do casamento

Imagine a seguinte situação: Joaquim, casado há muitos anos com Antônia, um dia se encanta com o charme de Valquíria. O relacionamento paralelo se intensifica e, apesar do laço fixo e perene mantido com a esposa, ele acaba engravidando a amante. Dessa gestação nasce Diego, um menino que, sem ao menos ter pedido para nascer, acaba gerando uma grande confusão familiar. Ciente de que é o verdadeiro pai da criança, Joaquim faz o registro da criança em seu nome no cartório. Três meses depois, após um “desequilíbrio em seu lar”, ajuíza uma Ação Ordinária de Anulação de Registro Civil e, ao final da ação, é determinada a exclusão – sim, a exclusão – do nome de Joaquim, que em Juízo confirmou a paternidade da criança, do registro de nascimento de Diego.

Essa história, apesar de parecer surreal para os dias de hoje, ocorreu em Cuiabá no início dos anos 80, há exatos 37 anos. Naquela época, imperava ainda a necessidade de preservação do núcleo familiar, e Diego, uma criança gerada fora do casamento, ainda recebia a alcunha pejorativa de ‘filho adulterino’. Foi apenas com a Constituição de 1988 que passou a valer a aplicação plena dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e a proibição de tratamento discriminatório em relação à filiação. Antes disso, crianças como Diego ficavam em situação marginalizada e acabavam sendo punidas por terem sido geradas alheias aos valores morais da época. Os ‘filhos adulterinos’ não podiam sequer ser reconhecidos, pois o Código Civil em vigor, de 1916, vedava expressamente esse reconhecimento.

Consta do processo, guardado no arquivo do Fórum de Cuiabá e cuja história foi selecionada para compor a série especial “145 anos: o Judiciário é história”, que Joaquim e a esposa Antônia ajuizaram uma ação contra o cartorário que efetuou o registro. Alegaram ser casados pelo regime de comunhão universal de bens. Joaquim disse ter conhecido Valquíria e com ela mantido relacionamento íntimo sem que sua esposa soubesse. Afirmou que desse relacionamento nasceu um filho, e que “fora  o suplicante quase que forçado a efetuar o registro do menino recém-nascido”. Ele alegou ainda que, por ocasião da efetivação do registro, explicou que era casado, mas que mesmo assim o cartório fez o registro, fato que “veio de encontro às leis vigorantes, agravado pelo fato de ter havido um desequilíbrio em seu lar, impondo-se, assim, que tal registro seja anulado judicialmente”.

Na audiência de instrução, realizada em 15 de fevereiro de 1982, Joaquim confirmou em Juízo que seria pai de Diego. Falou ainda que Valquíria teria pedido o registro do menor “com a finalidade previdenciária” e, na tentativa de manchar a reputação dela, que a amante seria “mulher solteira, e ora está com um homem, ora com outro, sendo que tem três filhos de três pais diferentes, e que no momento está grávida de outro homem”. Já o cartorário se defendeu dizendo que Joaquim teria se declarado livre e desimpedido legalmente para fazer o registro do menor, e que não sabia que Joaquim era casado com outra mulher.

Em 14 de abril de 1982, o promotor de justiça do caso defende a retificação da certidão de nascimento, com a omissão a ser feita em relação à paternidade da criança. “Constata-se que o requerente, coagido pela sua amante ou no auge da paixão proibida, efetuou o registro de seu filho adulterino. É bem verdade que o requerente reconhece efetivamente o seu filho, todavia contesta o seu nome na referida certidão de nascimento face ao seu estado de casado, como de fato o era, por ocasião de seu romance amoroso com Valquíria. Nestas condições entendemos que, com relação à certidão de nascimento de Diego, deve tão somente ser retificada e não anulada. A retificação refere-se à omissão que deverá ser feita com relação à paternidade, permanecendo os demais dados inalteráveis”. Seguindo a legislação vigente, o parecer foi acolhido pelo Juízo.

É fato que a proibição de reconhecer os filhos tidos fora do casamento beneficiava apenas os pais que cometiam adultério, prejudicando claramente as crianças – cujo registro recebia a expressão “omitido na forma da lei” -, violando os hoje plenamente consagrados princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e igualdade jurídica plena entre os filhos.

Foi somente com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 que os filhos, havidos dentro ou fora do casamento, ou adotivos, passaram a ter os mesmos direitos, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias como a que ocorrera com Diego.

O artigo 227, § 6º, da CF, é claro: Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Além disso, atualmente, nos processos que investigam paternidade, nos casos de negativa em se submeter ao exame de DNA, a paternidade imputada acaba sendo presumida. Sinal de que, felizmente, vivemos em outros tempos.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das pessoas envolvidas.

Redação

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