O anúncio de corte de 30% do orçamento de universidades e institutos federais feito pelo MEC (Ministério da Educação) causou alarde imediato de reitorias e direções das instituições. As previsões têm apontado para mudanças drásticas no cotidiano do ensino superior público ao ponto de poder ficar sem condições de manterem-se abertas a partir do segundo semestre – caso da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso). A professora de Serviço Social e diretora de comunicação da Adufmat, entidade que representa os docentes da UFMT, Lélica Elis Lacerda, disse ao Circuito Mato Grosso que as medidas do presidente Jair Bolsonaro (PSL) são uma continuidade do governo de Michel Temer (MDB), cujo golpe mais forte foi a aprovação da PEC do Teto dos Gastos, considerado por ela como item de uma agenda “ultra neoliberal”.
Circuito Mato Grosso: As universidades têm sofrido cortes seguidos de orçamento, não?
Lélica Elis Lacerda: O auge do orçamento das universidades foi em 2014 quando as universidades contavam com pouco mais de R$ 11 bilhões para despesas. No ano seguinte, por mais que a Dilma [Rousseff, ex-presidente do PT] tivesse anunciado um governo ‘Pátria Educadora’, teve um corte de 10% do orçamento do MEC (Ministério da Educação) como um todo – não sei como isso rebate nas universidades – mas, foi um rebatimento muito importante que redundou numa greve geral de quatro meses na UFMT, para tentar reverter esse corte, isso não aconteceu. Em 2016, o governo federal aprova a emenda constitucional 95 [a PEC do Teto dos Gastos]. Essa emenda tem como proposta o congelamento dos investimentos sociais a partir de 2018. Em 2017, o governo Temer [Michel Temer, ex-presidente do MDB] tem um tempo pra ajustar o orçamento, pra congelar em 2018, e o ajuste que ele fez foi baixar o orçamento das universidades para R$ 4,9 bilhões. Então, emenda constitucional em si, já está decreto por ela, a extinção não só das universidades, mas dos serviços públicos. Agora, a coisa fica mais dramática porque o orçamento do governo Bolsonaro [Jair Bolsonaro, PSL] reduziu o orçamento [das universidades] de R$ 4,9 bilhões de 2018 para R$ 4,2 bilhões; em cima desses R$ 4,2 bilhões, a pretexto da ‘balbúrdia’ dentro das universidades, que demonstra com clareza uma perseguição ideológica, o governo tira 30%.
CMT: Qual é o impacto desses enxugamentos nas atividades da universidade?
LEL: Se com R$ 4,2 bilhões já estava tendo congelamento de bolsas, atraso de bolsas, a necessidade de ampliar o valor do RU (Restaurante Universitário), porque a universidade não tem mais condições de subsidiar o restaurante, se a gente já estava tendo esse tipo de cortes, 30% vão além. Dizer que não vai ter mais ampliação de campi, foi no corte lá do Temes, dizer que Várzea Grande não vai ter mais a sua sede, que não vai sair o novo hospital universitário, isso já foi no corte do Temer. Agora o que nós estamos falando, do corte do Bolsonaro, é a universidade, a partir de julho, não ter condições de pagar água, luz; não existe mais viabilidade financeira das universidades seguir tocando seus cursos, ensino, pesquisa e extensão. Esse é drama da universidade hoje.
CMT: A universidade tem condições de remanejar despesas para manter-se funcionando?
LEL: A reitoria fez uma demonstração e o que ficou demonstrado é que existem duas peças de orçamento, uma das despesas obrigatórias, que são salários e encargos, e isso ainda garantido constitucional e não podem alterações – professores e técnicos não terão seus salários atrasados ou congelados; a segunda peça é das despesas discricionárias em que entra despesas correntes e de capital. As despesas correntes são para manter contrato com as empresas, por exemplo, a segurança é terceirizada, a limpeza é terceirizada, o RU é terceirizado, a manutenção de porta, ar-condicionado e até toner de impressora é hoje terceirizado. A despesa de capital é aquela para comprar maquinário, fazer reformas, isso há muito tempo já está bloqueado, e a universidade não tem mais a garantia para cumprir as promessas de expansão de cursos, construção de prédio. O que está acontecendo agora é uma contração das despesas correntes. Houve um corte de 21% das despesas correntes e corte maior ainda em despesa de capital. O cotidiano da universidade está sendo inviabilizado. A empresa da limpeza está há alguns meses sem receber da universidade porque, antes do corte dos 30%, a universidade está sem condições de pagar; os seguranças estão há dois meses sem receber salário pela mesma condição; até a empresa que fornece refeição para RU está sem pagamento, mas como ela é de grande tem conseguido suprir essas faltas e manter o fornecimento. A reitoria colocou que a partir de julho não existirá nem condições de manobrar as despesas.
CMT: A senhora acredita que as ações do governo sejam estratégicas para demonstre dos serviços públicos?
LEL: Isso nos dá a certeza que os direitos previstos pela Constituição Federal vão ser tirados paulatinamente, sem mudar a lei; na lei vai estar previsto, mas o recurso para dar aporte financeiro para a materialidade desses direitos está sendo estrangulado até chegar à situação que não terá mais esses serviços. Isso também está acontecendo com a Previdência Social porque os investimentos estão congelados e eles [governo Jair Bolsonaro] querem mudar a previdência por não tem recurso. O que é perverso também é que essa questão do aporte financeiro nas universidades está sendo vinculada à reforma da previdência. Estão colocando num berlinda: ou você aceita morrer trabalhando, sem aposentar nunca e você tem trabalho ou você não tem trabalho. As duas medidas afetam totalmente a população. Um País que não tenha desenvolvimento em ciência e tecnologia está fadado à pobreza. Eles querem fazer do Brasil uma neocolônia, exportar commodities (soja, milho). A colônia vem de coisas que não tem valor agregado.
CMT: O corte do MEC passa a afetar todos os envolvidos no cotidiano da universidade?
Acho que a novidade que está acontecendo agora é que esses cortes são tão profundos, que estão chegando aos elos mais fortes, que são os professores. Na verdade, desde 2015 os elos fracos das universidades, as trabalhadoras terceirizadas, já vêm sofrendo. Não é primeira que elas têm os salários atrasados, não é primeira vez que elas têm benefícios atrasados, como cesta básica e vale refeição, não é a primeira vez que atrasado salário da servidora da segurança. Esse corte está sendo tão profundo que a reitoria anunciou que cortou coisas para manter-se até julho – passagens para os professores publicarem artigos em evento científico, intercâmbios, diárias. Toda estrutura para produção acadêmica agora está comprometida.
Os cursos de pós-graduação já estão sendo afetados?
LEL: A pró-reitoria de pós-graduação já solicitou que nenhuma coordenação de curso de pós corte nenhuma bolsa em hipótese alguma, quem formou e defendeu é pra dar uma segurada. Cada programa de pós tinha um conjunto de bolsa e o departamento podia administrar; na medida em que as pessoas iam defendendo os trabalhos, se pegava a bolsa daquele que formou e dava para o próximo da lista. Aconteceu agora que na medida em que as pessoas iam formando, o MEC foi cortando as bolsas. Estavam havendo enxugamento de bolsa atrelada a uma proposta que vem sendo ventilada no MEC de que as pós-graduações abaixo de 6 pontos [na avaliação] vão ser eliminadas. É importante frisar que praticamente são só as universidade do sul e do sudeste que têm nota 6 adiante, porque elas tiveram aporte no passado para chegar a esse patamar. Essa medida do governo significa um aprofundamento das desigualdades regionais. Se isso acontecer, a pesquisa e o desenvolvimento de ciência e tecnologia vão ficar centrados nas regiões que, em tese, já são as regiões mais desenvolvidas do País. Aí, o governo federal diz que prioriza a educação básica, mas como é que vai se ter educação básica se os professores não fazem mestrado, doutorado?
CMT: Entrando num campo mais político, a senhora ver diferença entre as ações do Temer e as ações do Bolsonaro?
LEL: Pra mim, é uma continuidade, um aprofundamento. A minha leitura em pesquisa sobre a América Latina é que a partir da crise de 2008, os Estados Unidos, por uma necessidade econômica deles, estão avançando sobre outros Países e territórios para poder reorganizar as economias desses territórios a partir de suas necessidades. Então, está aprofundando a divisão do trabalho, a dependência da América Latina dos Estados Unidos e, sobretudo, a dependência tecnologia, é por isso é que estão sendo atacadas as universidades. Nesse contexto, o que é sendo pra nós é um projeto ultra neoliberal, que liminar nossos direitos para poder suprir as necessidades de lucro. O governo Temer chega colocando nitidamente uma pauta ultra neoliberal, com uma medida, a emenda constitucional 95, ele conseguiu aplicar o maior programa de austeridade do mundo. O Bolsonaro vem na mesma esteira. Para se poder gerir o Estado dentro desse novo reordenamento que não pode haver maior aplicação nas políticas públicas e destinar isso aos bancos, é necessário reordenar todo o orçamento, é por isso que está atacando a educação, a saúde e está insistindo na reforma da previdência.
CMT: A reação ao corte do MEC foi imediata e o ato parece muito escandaloso, a senhora acha que o governo Bolsonaro vai manter sua decisão?
LEL: A esperança que fica é que esse corte seja mesmo uma forma de alardear e tentar barganhar a reforma da previdência e que ele não tocar isso adiante. Mas, isso é uma esperança. Dados concretos são de que o Paulo Guedes é um banqueiro e vi uma notícia que a própria irmã do Paulo Guedes é ligada à rede privada de educação. Eliminar as universidades públicas significa ampliar mercado pra própria irmã dele. Esse governo é efetivamente um governo que defende a família, mas a família dele, o restado da população está submetido a um projeto de privado de enriquecimento de meia dúzia de gente.