Circuito Entrevista

Delegado afirma que jogo do bicho reinou em MT por duas décadas

Nascido em 1971, em Rinópolis (SP), Adriano Peralta Moraes chegou a Mato Grosso em 1993. Instalou-se em Tangará da Serra (242 km de Cuiabá) e lá atuou como advogado até a conclusão do curso na Academia de Polícia Civil, quatro anos depois. Atuou como delegado titular no interior e na capital e já foi delegado geral, o ápice da carreira na instituição. Atualmente, é o corregedor-geral adjunto. Casado, pai de três filhas e apaixonado por literatura, Adriano Peralta Moraes lançou no dia 15 de maio o seu terceiro livro, Memórias de Um Chefe de Polícia.

Em entrevista ao Circuito Mato Grosso, revelou que lançou seu primeiro livro quando tinha 17 anos de idade, sob o título Meras Definições. Em 2003, apresentou seu segundo trabalho, O Advogado Cuyabano em Ação, que vendeu 1.000 exemplares. No mais recente, Memórias de Um Chefe de Polícia, Peralta conta seus 20 anos na instituição, casos pessoais e de carreira. Relata principalmente os obstáculos enfrentados na Polícia Civil na década de 90 e início dos anos 2000. Em um dos capítulos, mostra como o Estado era bancado por João Arcanjo Ribeiro e como o “Comendador”, ao ser preso no Uruguai em 2002, pagou sozinho pelos crimes que envolveram muita gente do alto escalão de Mato Grosso.

“Se tivéssemos naquela época o instituto da colaboração premiada, com certeza a província teria virado de cabeça pra baixo, pois João Arcanjo pagou praticamente sozinho pelos crimes que tinham envolvimento de muita gente importante e que ficaram impunes pelo transcurso do tempo”, diz trecho da obra do delegado. Confira abaixo os principais trechos da entrevista. No dia 4 de agosto, ele fará o lançamento do livro na 25ª Bienal Internacional do Livro, no estande da All Print, no Anhembi, em São Paulo, a partir das 17h.

Circuito Mato Grosso: Como foi ingressar na Polícia Civil?

Adriano Peralta: Eu ingressei na Polícia Civil em abril de 1997, em uma situação bem complicada, iniciei no interior da cidade de São José do Rio Claro, estrada de chão, com a situação bem rudimentar.

CMT: Quando começou a atuar em Cuiabá?

A.P.: Eu vim para Cuiabá no ano de 2006 e há 11 anos atuo na parte administrativa, já cheguei a ser chefe da polícia e retornei à corregedoria, onde estou atualmente.

CMT: Já existiam delegados na sua família?

A.P.: Não, eu sou o primeiro da família, mas já era da área jurídica e atuava como advogado, aí, prestei o concurso, fui aprovado e virei delegado.

CMT: Quais eram as dificuldades no início da carreira?

A.P.: A polícia de hoje não é como a polícia de antigamente, de 20 anos atrás. Por exemplo, quando você tinha uma viatura, era em péssimo estado. O Estado te dava a viatura, mas não te dava combustível, manutenção, não existia cota de combustível, então você tinha que se virar com tudo, não tinha polícia, aí você tinha que pegar preso para atuar como policial, era uma situação muito complicada.

CMT: E a questão do armamento na época?

A.P.: Era assim: você terminava a academia (Acadepol), aí ia ao setor de armas, munições e explosivos da polícia e havia duas caixas lá. Às vezes até um saco, aí falavam: “vai lá e escolhe um revólver lá”. Você pegava aquele armamento velho, escolhia qual era o melhor deles e às vezes tinha munição. Quando muito, você recebia uma carga de munição, fazia essa carga naquele revólver velho e ia para a rua.

CMT: E como eram os crimes na época, muito diferentes dos atuais?

A.P.: Nós não tínhamos a questão das facções criminosas como temos hoje. Então, esse é o principal ponto, mas você tinha o crime organizado no Estado, inclusive cito no livro que nós éramos dominados pelo jogo do bicho. O Estado de Mato Grosso era dominado pelo jogo do bicho (Colibri). A polícia, os poderes, as eleições passavam pelo jogo do bicho, mas você não tinha esse tipo de crime violento como os das facções de hoje em dia, as duas maiores (PCC e CV) que disputam o comando. Nesse ponto houve um diferencial, mas a polícia evoluiu bastante com os métodos.

CMT: A Colibri atuava em todo o Estado?

A.P.: Sim, o jogo do bicho atuava no Estado todo, principalmente na capital, onde existiam bancas espalhadas por tudo quanto é lado.

CMT: Mas o jogo do bicho dava trabalho à polícia, como as facções?

A.P.: Não. Era uma coisa mais institucionalizada, era quem controlava o Estado. Então você tinha que estar vinculado àquelas ordens que vinham de cima e de pessoas que recebiam dinheiro a mando do jogo do bicho.

CMT: Naquela época também existiam crimes praticados por empresários ou políticos?

A.P.: Era uma coisa muito ousada no Brasil investigar poder, e isso começou de um tempo para cá. Ou seja, o Brasil está convivendo com isso de uma maneira muito recente, de ex-governadores presos, ex-presidente da República preso. É uma coisa que tem se alastrado. E, de um ponto de vista, é bom pois as instituições têm feito o seu papel, mas por outro lado acaba desestimulando, pois o próprio eleitor, o cidadão, acaba se cansando de tantos casos e, como muitos intelectuais têm dito hoje, estamos vivendo uma década perdida no Brasil.

CMT: Por quê?

A.P.: É uma década em que não surgiu nenhum grande líder, uma década em que todos os índices pioraram, os econômicos, os de criminalidade. Se você pegar as novelas, existiam Janete Clair e Dias Gomes, hoje se tem Miguel Falabella, você pega as músicas de antes: hoje tem Simone e Simaria, então até a cultura de hoje está na década perdida. E na criminalidade também.

CMT: Em relação ao surgimento de líderes, temos a aclamação de parte da população a um pré-candidato à Presidência de extrema direita. Por que ocorre isso? É falta de crença dos brasileiros com a segurança, com a justiça?

A.P.: Eu entendo de outra maneira: o povo brasileiro já chegou a um estágio em que ele quer chutar o balde nesta eleição. Temos dois parâmetros bem recentes a serem analisados aí: as eleições no Amazonas e no Tocantins. As duas foram muito próximas, uma com 49% e outra com 52% de não participação popular, então estamos chegando a um nível altíssimo de eleitores que não estão indo às urnas em um país onde o voto é obrigatório devido ao desânimo total com a política. Então, qualquer um que chega com um discurso diferente, dizendo que vai mudar, acaba atraindo a atenção do eleitorado.

CMT: Na sua visão, a polícia de hoje melhorou?

A.P.: Em termos de estrutura, melhorou imensamente, por mais que o pessoal reclame; melhorou muito. Hoje você tem viatura nova, tem combustível, tem armamento novo, a presença física em todo o Estado de Mato Grosso, você dispõe de meios de comunicação e rapidamente consegue acionar apoio, poucos municípios ainda estão sem asfalto, e aí você consegue se deslocar rápido por todo o Estado.

CMT: E o que falta melhorar?

A.P.: A segurança, na verdade, precisa acabar com a politicagem e ser tratada como uma política de Estado, pois não adianta, entra o governo, Zé põe de uma maneira, o João coloca de outra, o Antônio põe de outra. E não é assim, é uma instituição de Estado, ela tem que ser mais ou menos como o Ministério Público, o Judiciário e principalmente ter orçamento.

CMT: A falta de orçamento prejudica a polícia?

A.P.: É complicado, pois hoje, por exemplo, você precisa de R$ 20 milhões, destinam-se R$ 10 milhões e aí dizem que vão suprir o montante. E vai indo no conta-gotas aqui, ali, na suplementação de verbas, é o jeitinho brasileiro. Quem assumir já precisa entrar sabendo quanto vai ter para gastar, pois desses R$ 20 milhões pedidos, com muito sacrifício chega a 12, 13 milhões. Aí a conta não fecha e fica conta sem pagar. Falta toner em impressora e por aí vai.

CMT: Esses detalhes ainda são cruciais?

A.P.: Se faltar um toner de impressora em uma Central de Flagrantes como a de Cuiabá, de imediato você para 35 viaturas que estão na rua. Uma coisinha de nada, mas aí quem está realizando o flagrante ali não consegue receber (boletim de ocorrência) e as viaturas que poderiam estar fazendo as rondas param, coisas básicas que prejudicam o desenvolvimento do trabalho.

CMT: Voltando ao tempo de polícia: você passou por muitos momentos de perigo ao longo da carreira?

A.P.: Sim, no livro tem um capítulo em que conto uma história de 2001, quando eu estava em Tangará da Serra e houve o assassinato de um vereador. Fui denunciante naquela CPI e a justiça cassou quase todos os vereadores, foi pedida a prisão do prefeito. Foi bem complicado mexer com o quarto poder de Mato Grosso, sofri ameaça de morte. E também há outros casos, pois o policial corre risco constantemente.

CMT: Como foi atuar por muitos anos no interior?

A.P.: O interior é complicado, pois não há descanso, a pessoa sabe onde você mora, tem seu celular. Se acontece qualquer crime, eles ligam na hora, vão à sua casa e não tem como se livrar da ocorrência. É 24 horas, direto.

CMT: Muitos que entram na polícia acham que vai ser fácil e só olham a questão salarial e estabilidade. Então, podem descartar essa ideia?

A.P.: Para se ter uma ideia, meu primeiro Natal na polícia foi atendendo um homicídio. Eu cito no livro que em 2006, no aniversário da minha filha, tinha planejado uma festa (que foi feita), porém não participei, o chefe chegou e disse que teria uma operação em Poconé e eu tive que trabalhar. Em relação à pergunta, é um problema que vivemos hoje, o excesso de diplomas e a falta de vocação. Entra muita gente sem vocação alguma para a carreira policial, em todos os cargos, até tem um caso que não cito no livro, que um policial entrou em Cuiabá e, quando estava na academia, queria um relatório da inteligência, pois ele queria saber qual a cidade menos violenta para ele trabalhar. É como se fosse um enfermeiro em um hospital dizendo que não quer trabalhar com sangue (risos).

CMT: Tem um capítulo chamado ‘A Cultura da Morte’. Ao que se deve a diminuição dos indicadores de homicídios no Estado?

A.P.: Nós priorizamos combater o homicídio e os índices caíram bastante porque este tipo de crime é importante no desenvolvimento do Estado, porque nenhum empresário vai querer vir investir aqui se os índices de homicídio se mantivessem altos. Por exemplo, em 2014, mesmo com todo aquele aparato de investimento, os índices estavam lá em cima. Então priorizamos e pegamos tudo que tínhamos de melhor para combater, e conseguimos, inclusive saiu uma pesquisa do Ipea (15) com a lista das 100 cidades mais violentas do Brasil e Cuiabá não aparece na lista.

CMT: Hoje você está como adjunto da corregedoria, mas ao longo da carreira já recebeu propina ou presenciou corrupção?

A.P.: Na verdade, quem vai oferecer dinheiro já sabe de antemão para quem ele vai fazer a proposta. Ele não chega oferecendo do nada, ele primeiramente sonda o ambiente, digamos assim – e isso foi muito raro em minha carreira –, mas já me deparei com casos de corrupção, inclusive de pessoas de dentro da própria instituição que ordenavam: “vai lá e faz tal serviço pra mim, ou me ajuda em tal diligência”, e posteriormente ter o conhecimento de que aquele indivíduo estava ganhando dinheiro em suas costas.

CMT: Como surgiu a ideia de começar a escrever livros?

A.P.: Eu, com 14 anos de idade, ganhei um concurso literário e fui líder estudantil. Sempre gostei de escrever. Aos 17 anos, escrevi meu primeiro livro, já tive jornal na cidade de Quatá (interior de São Paulo), que foi o primeiro jornal do município, e assim foi indo. Ano que vem, se tudo der certo, eu pretendo lançar um livro em espanhol.

CMT: O livro em espanhol contará uma história policial ou tem outro foco?

A.P.: Na verdade, a ideia é um advogado, um personagem fictício que vai contando a história real do Brasil para os países de língua hispânica. Talvez lançar na Espanha ou em países vizinhos aqui da região, para que possam divulgar para todos os países da comunidade hispânica.

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