Aos 25 anos, Aylton Adalberto Mortati era um alvo preferencial da repressão durante a ditadura brasileira. Havia sido preso após um congresso de estudantes em 1968 e no ano seguinte participara de uma ação espetacular que sequestrou um avião que o levaria a Cuba. Em 1971, após treinamento para guerrilha, voltou ao Brasil clandestinamente para militar na resistência armada. Montou base em uma casa na Vila Prudente, em São Paulo, até que o aparelho em que vivia foi "estourado" pelos militares em 4 de novembro de 1971. Nunca mais foi visto e não houve qualquer registro sobre seu paradeiro nos documentos oficiais do regime.
Agora se sabe que, naquele mesmo dia, Mortati foi sequestrado, torturado e morto, de acordo com relatos de testemunhas e dos próprios repressores, os últimos concedidos em condição de anonimato ao jornalista Marcelo Godoy, autor do premiado livro A casa da vovó, sobre a repressão em São Paulo. Mortati consta também como um dos 434 mortos e desaparecidos da ditadura brasileira (neste domingo completam-se 54 anos do golpe militar) no relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Ainda assim, até a semana passada, nada havia acontecido aos acusados do crime que ainda estão vivos.
Na última terça-feira, isso mudou. O Ministério Público Federal denunciou – acusou formalmente perante a Justiça – o policial civil Walter Lang, o delegado Cyrino Francisco de Paula Filho e o investigador Dirceu Gravina pelo sequestro de Mortati. "(Eles) privaram e ainda privam ilegalmente a vítima de sua liberdade até a presente data, mediante sequestro cometido no contexto de um ataque estatal sistemático e generalizado contra a população", diz o texto da denúncia.
Trata-se da trigésima segunda denúncia penal no gênero no país, parte de um esforço para apurar e julgar os crimes cometidos na ditadura e tentar pressionar, no Judiciário, por uma mudança de interpretação e de alcance da Lei da Anistia, de 1979. A legislação, que impede a responsabilização de pessoas por crimes de motivação política entre 1961 e 1979, segue sendo aplicada para encerrar boa parte das ações pedidas pelos procuradores, apesar da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 2011, ao qual o Brasil é signatário, que obriga o país a investigar e punir os crimes. As ações muitas vezes também são bloqueadas ignorando a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito de desaparecimentos forçados – trata-se de um crime permanente e, portanto, fora do escopo da Lei da Anistia.
Mais uma vez, o STF
Como em muitas outras questões da vida nacional, o Supremo é a única esperança de que o panorama, que faz do Brasil o mais atrasado na matéria entre seus vizinhos vítimas de ditadura, avance. Para isso, o tribunal, que reafirmou a validade da Lei da Anistia em 2010, teria que voltar ao tema. Como parte da ofensiva para que isso ocorra, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, fez um movimento há dois meses. Em 7 de fevereiro, ela pediu ao STF que reabra o caso do ex-deputado Rubens Paiva, morto pelo regime em 1971, e insistiu que o Supremo trate o tema como "prioridade" e rediscuta o alcance da anistia.
O caso de Rubens Paiva é emblemático e ilustrativo das idas e vindas legais do tema. O ex-deputado foi sequestrado pelos repressores e morreu em 1971 no antigo DOI-Codi, na Tijuca, de acordo com a denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro. Em 2014, o MPF acusou cinco militares pelos crimes de homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual. Um juiz aceitou a denúncia e abriu a ação. Mas quando José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos estavam prestes a se sentar no banco dos réus, a defesa dos militares conseguiu uma liminar no STF congelando tudo por conta da Lei da Anistia.
A decisão provisória foi concedida pelo então ministro do STF Teori Zavascki, em 2014, e essa liminar é justamente o alvo do pedido de Dodge. Ela quer que haja uma decisão definitiva sobre o caso e que a Corte "reflita" sobre a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre a Guerrilha do Araguaia que, em 2011, determinou que o Brasil deve processar os acusados pelos crimes cometidos na ditadura.
"A decisão da CIDH marca uma inflexão. O Supremo vai ter que enfrentar essa questão. Quando o tema é a ditadura, o Supremo não aceita a soberania da CIDH, mas em outros casos sim: na Lei Maria da Penha, na condenação do trabalho escravo, por exemplo", disse ao EL PAÍS a subprocuradora-geral da República, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen.
Frischeisen, que chefia a câmara do Ministério Público dedicada à coordenação e revisão na área criminal, lembra que os esforços não estão sendo feitos só na área penal. Ela cita ações cíveis movidas para esclarecer a responsabilidade do Estado por violações graves às populações indígenas durante a ditadura. Um dos casos é a tortura e prisão de integrantes do povo Krenak, em Minas Gerais. "As ações são uma forma de prestar contas para as vítimas e suas famílias. Fazer as investigações e fazer as denúncias é também cumprir esse papel de memória e verdade. Trazer para a história o que aconteceu".