Circuito Entrevista

‘Direito penal não é vingativo, é reeducativo’

Na entrevista especial da semana, o advogado e presidente da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT), Ardonil M. Gonzalez Junior, aborda a complexidade do tema segurança pública no Brasil. Gonzales é oficial superior da reserva remunerada da Polícia Militar.

Para o advogado, a questão de segurança é bem mais ampla do que as ações de comando e controle, com viaturas fazendo policiamento e prendendo suspeitos. “Envolve muitos fatores, e o importante seria um investimento na política pública de Estado, e não apenas política pública de governo (com ações que duram no máximo quatro anos ou uma gestão), como há hoje em Mato Grosso”, pontuou Ardonil.

Sobre o sistema judiciário, o advogado foi categórico ao dizer que o direito penal não é vingativo, é punitivo, porém há falhas no sistema do Estado em relação a isso: “O direito penal não é vingativo, ele é reeducativo. É um sistema para reeducar quem cometeu crime, e não para vingança. O grande problema é que a população brasileira, diante dessa crise moral que vive, passa a querer vingança”.

Em relação às facções criminosas existentes em Mato Grosso, o jurista fala que o Estado deve criar políticas públicas, além de reforço de aparato policial. Deve-se investir em serviço de inteligência, escolas, atendimento básico de cidadania, para cortar o mal pela raiz e evitar que Mato Grosso possa se tornar um Rio de Janeiro. Leia abaixo os principais trechos da entrevista que ele concedeu ao Circuito Mato Grosso.

Circuito Mato Grosso: Qual o papel da Comissão de Segurança Pública da OAB-MT?

Ardonil Gonzales: A comissão da OAB não trabalha com ações pontuais como, por exemplo, ter mais polícia, mais viaturas, a Comissão de Segurança Pública da OAB faz uma análise sobre as políticas de Estado.

CMT: O que o senhor considera políticas públicas?

Ardonil Gonzalez: A política pública é aquela que afeta a todos os cidadãos, e a OAB avalia como está o investimento no Estado. Nossa principal crítica ao governo é a ausência de política pública de Estado, pois percebemos que em Mato Grosso só há políticas públicas de governo.

CMT: Qual a diferença entre elas?

Ardonil Gonzalez: As políticas de governo são o que tem acontecido, como investimento em equipamento, viaturas e efetivação de concursados, entre outros. Já a política pública de Estado é o planejamento de longo prazo, que se caracteriza por mais de 10 anos, ou seja, haver um plano em que, mesmo que um governo saia, ações continuem a ser desenvolvidas, pois houve um planejamento de Estado.

CMT: Atualmente, há uma crescente das facções criminosas em Mato Grosso. Como uma política pública de Estado pode interferir nessa situação?

Ardonil Gonzalez: O governo teria que trabalhar em ações por um período mínimo de 10 anos, como, por exemplo, investir em investigação e, a partir daí, ver qual a capacidade orçamentária do Estado para isso. Quais materiais necessários, seja humano ou tecnológico, um delegado por ano para comandar as ações. A partir disso, durante 10 anos, fazer o investimento preciso; isso é política de Estado e deve deixar de ser política de governo.

CMT: E em outras frentes que não seja no combate às facções, quais políticas de Estado podem ser implantadas?

Ardonil Gonzalez: Em outros setores da sociedade, que atuarão na prevenção futura de crimes. Vamos supor um bairro fictício, o Piquiri: eu tenho que fazer um levantamento geográfico e descubro que lá não tem escola, não tem oportunidade de emprego, que é um local sujo. Então, o governo do Estado, dentro de um plano de segurança pública, irá fazer um investimento setorizado, por meio de suas várias secretarias, para colocar uma escola dentro, para colocar uma delegacia, um posto de saúde e assim por diante.

CMT: Então a questão socioeconômica influencia diretamente no aumento da violência?

Ardonil Gonzalez: Sim. E é por isso que o plano de Estado para a segurança pública é tão importante, porque eu deixo de trabalhar na atividade setorial, aumento de policiamento ostensivo, aumento de investigação, e começo a trabalhar com organismo, ou seja, se uma parte falha, o resto começa a falhar também.

CMT: E o policiamento nas ruas não seria eficiente?

Ardonil Gonzalez: Quando você começa a trabalhar com os números de segurança pública, descobre que o aumento de efetivo de policiais nas ruas tende a fazer baixar os índices de criminalidade até um determinado ponto. De um determinado ponto para baixo, já não são mais ações de polícia, aí já passam a ser ações sociais, ações de saúde e todas as outras que interferem diretamente nos índices de segurança pública. A atividade policial faz o papel de prevenção e repressão, mas o que faz uma pessoa virar criminosa são outros elementos que não têm nada a ver com a atividade policial.

CMT: Então é uma falsa sensação de segurança a presença policial?

Ardonil Gonzalez: A segurança pública é um dos temas mais complexos que se pode colocar em discussão. Tem um estudo do núcleo de violência da Universidade de São Paulo (USP) que aponta que o número de homicídios aumenta, em curva ascendente, sete anos após uma crise econômica. Tem uma crise econômica grave e sete anos depois você terá uma curva ascendente nos números da segurança pública.

CMT: E o que poderia ser feito?

Ardonil Gonzalez: Com base nesses estudos, é possível criar situações de prevenção desse aumento de violência, como aumentar atividades de cunho social, reforçar o atendimento nas creches, transformar as escolas em atendimento integral, ir às regiões que tenham tendência de violência e criar frentes de emprego. Isso significa o Estado fomentando as outras secretarias, como se fosse um organismo para fazer a prevenção dos números de segurança pública.

CMT: Então o problema da violência é ligado a questões sociais anteriores?

Ardonil Gonzalez: Um exemplo prático disso é o Rio de Janeiro. O problema da segurança pública lá começou neste governo? Não. O problema começou há 30 anos, quando o Estado passou a se omitir das suas funções básicas: entrega de gás, leite, remédio e, como sabemos, até os Correios são proibidos de entrar na favela. Sendo assim, o Estado não fornece a assessoria mínima de segurança pública. Hoje se sabe que posto de saúde, para funcionar dentro de uma favela, tem que ter autorização do tráfico. Isso não começou agora, foi há muito tempo.

CMT: E a entrada do Exército na favela seria uma política de Estado?

Ardonil Gonzalez: Essa intervenção é uma política de governo e não de Estado. O general Braga Neto inclusive deu uma declaração interessante quando disse que o Exército está lá não para resolver os problemas de segurança pública e sim para diminuir os índices de violência até que sejam aceitáveis. Isso é verdade, pois quando você coloca Exército ou polícia para prender, quando tu prende, prende alguém que já é criminoso e não se trabalha na origem, para não deixar a pessoa ir para o mundo do crime.

CMT: O crescimento populacional desordenado também influencia a segurança pública?

Ardonil Gonzalez: De forma absoluta, pois quando há crescimento é preciso pegar o Estado e aumentar a sua rede de proteção. Geograficamente, ela vai se tornando mais distante, gera maior despesa e isso influencia diretamente a segurança pública. Não é a vinda de mais pessoas e sim o crescimento desordenado. E quem controla o crescimento é o Estado; se o Estado não ordena o crescimento, ele favorece o aumento da violência.

CMT: Voltando para Mato Grosso: há risco de o estado virar um Rio de Janeiro no sentido do crescimento da violência e chegar a ser dominado pelas facções?

Ardonil Gonzalez: Esse risco existe em Mato Grosso e também no Brasil inteiro. Hoje, nós temos no estado as facções criminosas, mas não temos ainda o crime organizado em sua função mais clássica. Para se ter crime organizado clássico, ele tem que ter ramificações dentro do estado, como ocorre no Rio de Janeiro, com promotores, juízes, delegados e policiais envolvidos com essas facções. Aqui ainda não temos essa notícia, mas corre o risco de ter, pois se nada for feito grupos criminosos se tornarão crime organizado.

CMT: E há solução possível?

Ardonil Gonzalez: Existem dois tipos de crimes: o crime habitual e o crime de ocasião, e eles são distintos. O Estado poderia trabalhar em cima do crime habitual, que são furtos e roubos, por exemplo, e investir na investigação, pois o criminoso habitual tem um modus operandi para agir. As facções em si são compostas por criminosos habituais, esses presos, depois de identificados, deveriam ficar detidos em presídios diferenciados.

CMT: E quais são os crimes de ocasião?

Ardonil Gonzalez: São os crimes que não dá para prever, um homem mata a mulher, por exemplo, isso é de ocasião, não há como a segurança agir e estar dentro da residência do casal atuando. Dois motoristas batem os veículos e partem para a briga, nisso o Estado não tem como interferir também. Essas ocorrências é que são os crimes de ocasião.

CMT: O senhor pode fazer uma avaliação do sistema penitenciário?

Ardonil Gonzalez: A lei de execução penal diz que o preso tem que ficar separado por tipo de crime, comportamento e por periculosidade, mas o Estado hoje pega todo mundo, coloca em um lugar só e acaba transformando o presídio em uma fábrica de criminosos. Essa é uma opinião pessoal.

CMT: É falho esse sistema?

Ardonil Gonzalez: O nosso sistema atual, ao invés de reeducar, faz com que a pessoa, no sistema prisional, saia pior do que entrou. Há casos em que ele pode sair uma boa pessoa, mas a possibilidade é que ele saia pior, pois é maltratado. O Estado de Mato Grosso não tem dinheiro para se transformar em um Canadá da noite para o dia, mas tem a chance de começar, e para isso é necessário um Plano de Estado para a segurança pública, em um investimento de 10 anos.

CMT: Seria o caso de privatizar as penitenciárias?

Ardonil Gonzalez: Eu não tenho elemento técnico para responder isso aí, mas, a meu ver, a privatização tem vantagens e desvantagens. Acho que para os crimes menos violentos, mais leves, a privatização seria um grande negócio, mas isso é apenas um palpite e não uma posição de representante da OAB.

CMT: E a opinião sobre o Judiciário brasileiro, que solta o criminoso sem ter cumprido a pena completamente?

Ardonil Gonzalez: Eu vejo que existem regras legais que foram votadas pelo Congresso Nacional e que valem. Hoje, 40% da população carcerária do Brasil são presos provisórios. A lei determina que seja cumprida a duração razoável de processo. O que é isso? A lei diz que no crime comum, por exemplo, o réu tem que ser julgado em no máximo 120 dias, mas existem processos que duram três anos para solucionar um crime comum, e o Judiciário contribui muito para esses processos quando não se marca uma audiência.

CMT: Então a culpa seria do juiz?

Ardonil Gonzalez: A culpa nesse caso também não é do juiz, é do sistema, pois não temos juízes suficientes, não temos servidores do Judiciário suficientes, então, um caso comum do início até a sentença final tem que ser feito em 120 dias. É um direito de a pessoa ser julgada no prazo, pois nem todo mundo que está preso é culpado, pois se todo mundo que fosse pego pela polícia fosse culpado, não precisaria do Judiciário.

CMT: Isso não aumenta a revolta da população em geral?

Ardonil Gonzalez: O direito penal não é vingativo, é reeducativo. Ele é um sistema para reeducar quem cometeu o crime, e não para vingança, o grande problema é que a população brasileira, diante dessa crise moral que vive, passa a querer vingança contra os criminosos e a querer culpar o sistema, que pode ter a sua parcela de culpa, mas não é só isso, é também a forma de execução desse aparato que é o Estado.

CMT: Para finalizar. Esse sentimento de revolta da população, a seu ver, é mais contra a segurança pública, o Judiciário ou os políticos?

Ardonil Gonzalez: A meu ver, o maior sentimento de revolta da sociedade hoje é com os políticos, porque a população começa a perceber que o mau uso do dinheiro público e o mau exemplo dos políticos refletem de forma muito direta nas pessoas. Quando a polícia vai ao apartamento de um político e encontra 50 milhões de reais lá e aí se chega ao pronto-socorro e não há nem aspirina, o cidadão começa a refletir e a pensar: “O que esse político está fazendo?”. Por isso vejo assim, pois na polícia, Judiciário, Ministério Público, há uma percepção de que eles fazem tudo o que podem, e se não fazem mais é porque não podem, mas há também bons políticos e não só os ruins.

Redação

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