Eu nasci na pequena cidade de Alto Araguaia, cravada em um vale, entre os rios Boiadeiros e Araguaia, é quase uma ilha. Fundada pelo Major Carlos Hugueney, da qual faziam parte os distritos de Ponte Branca, Ribeirãozinho, Alto Garças e Alto Taquari. Os três primeiros foram emancipados quando meu avô Ondino foi prefeito e o último, Alto Taquari, foi emancipado quando meu pai, Pedro Lima, foi deputado estadual.
Dessa região surgiram grandes homens e grandes mulheres. Esse lugar foi a fonte de inspiração para os poemas de Arlinda Pessoa Morbeck, poetisa baiana, mas araguaiense por adoção. Dali surgiram grandes políticos como Clóvis Hugueney, Carlos Irigaray, Edgar Nogueira Borges, que chegou a ser o vereador mais votado da história da cidade de São Paulo, Oscar Soares, o ex-ministro do Tribunal de Contas da União, Carlindo Hugueney. Dessa região, também surgiram renomados juristas, médicos, engenheiros, professores, parte deles alfabetizados pela professora Nilva. Dessa região, também surgiram grandes artistas como a cantora Vanessa da Mata e o gênio Clovito Irigaray.
Pela força moral e intelectual dos políticos dessa região, que Alto Araguaia foi a única cidade do interior de Mato Grosso a ser visitada por Juscelino Kubitscheck durante sua campanha a presidente. E era também o ponto de parada do líder do PSD, Filinto Muller.
Já na década de 1980, tivemos Cacildo Hugueney, Luiz Soares, Pedro Lima e Hermes de Abreu com atuações de destaque na Assembleia Legislativa de Mato Grosso e ocupando cargos relevantes.
A minha geração e a geração anterior minha tiveram o privilegio de estudar no Colégio Salesiano Padre Carlete. O ensino, nesse colégio Salesiano, equiparava-se ao dos melhores colégios do Brasil. Já no antigo primeiro ano do primeiro grau, eu tive aulas de música e de teatro como parte de nossa grade curricular. A primeira música que eu aprendi (e até pouco tempo atrás eu ainda guardava meu caderno de música com essa letra cifrada) foi “Cálice”, de Chico Buarque. E, ainda menino, às vezes fugia de casa à noite, para dar uma espiada no Bar Escolinha comandado por José Celso, o Zé Paçoca, e por seu primo Nelson Timo, diga-se de passagem, profundo conhecedor da música popular brasileira. Lá se tocava a fina flor da MPB.
Já no final da década de 1970 para 1980 nos mudamos para Barra do Garças. A mística Barra do Garças, entre suas serras, praias, cachoeiras, tinha como trilha sonora as belíssimas canções regionais de Eudes, Candinho, Divino Arbues entre outros. Em Barra, sai da infância para a pré-adolescência em cima de duas rodas. Mudando logo depois para Cuiabá, quando meu pai assumiu o primeiro mandato como deputado estadual. Aos quatorze, botei o pé na estrada, aos quinze, já me encontrava na divisa dos Estados Unidos com o Canadá, no estado de Michigan. Retornando aos dezessete anos, fui junto com o finado comandante Nilvan Carvalho para fazer o curso de piloto privado de avião em São Paulo, capital.
Entre idas e vindas, só voltei a morar mesmo em Cuiabá em 1995, após me casar com uma mineira de Juiz de Fora, onde havia morado por um ano. Nessa época, morando em Juiz de Fora, tive a oportunidade de assistir um show de Chico Buarque no antigo Canecão, nessa época estava com vinte e um para vinte e dois anos de idade. Revivi muito forte a memória de Alto Araguaia, de Barra do Garças, da primeira canção que eu aprendi, de Nelson Timo e da mágica Barra do Garças.
Nessa época, eu já militava na Juventude Socialista do Partido Democrático Trabalhista – PDT, levado pelas mãos de dona Márcia Piciani, mãe do atual Ministro do Esporte Leonardo Piciani, que moraram muito tempo em Barra do Garças.
Pulsava na veia o sangue político, na mente a indignação, no coração a esperança de um Brasil melhor, mais justo, igualitário, em função da abertura democrática e da Carta Constitucional promulgada naquele período, que fez “com que a liberdade abrisse as asas sobre nós”.
Este ano completamos trinta anos da Constituição Cidadã e a geração de políticos, que apesar de usufruírem de todas as prerrogativas que nossa Carta lhes proporcionou, nos impingiram um país muito pior do que eles encontraram no pós ditadura. Não se preocuparam com a formação de novas lideranças comprometidas, insistem na ausência total de dignidade para se manterem no poder a qualquer custo. Não adquiriram o senso comum de nação. Não se importam com esse legado maldito, que seus filhos herdaram e que seus netos herdarão. Quando forjam sua saída do cenário político ou do poder, metem goela abaixo seus filhos contaminados e sem legitimidade. E ai vejo, que aquela música composta dentro de um regime de opressão, que aprendi no Colégio Padre Carlete, há quase de quarenta anos, é mais atual do que nunca.
“Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta, mesmo calada a boca, resta o peito e o silêncio na cidade não se escuta”.
As pessoas de bem se perguntando:”de que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra, outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta”.
Abro as manchetes dos jornais e vejo um museu de renovação e já me vem a música na cabeça:”de muito gorda a porca já não anda, de muito usada a faca já não corta, como é difícil, pai, abrir a porta, essa palavra presa na garganta. De que adianta ter boa vontade, mesmo calado o peito resta a cuca…”.
Noite após noite me pego na agonia dessa indignação que não passa. “Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano, quero lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado, porque esse silêncio todo me atordoa. Atordoado eu permaneço atento, na arquibancada, para a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa”.
Quando eu comecei a escrever sobre o atual governador Pedro Taques, fui tachado de louco. Quando comecei a fazer críticas pontuais ao Ministério Público fui tachado de louco. Agora, não há um dia sequer que eu não abro os jornais e vejo críticas contundentes ao atual governador Pedro Taques. Será que a minha loucura contaminou a todos? Ou será que todos recobraram a sobriedade de repente?
Vejo o prefeito de uma capital, que vai completar 300 anos, flagrado botando dinheiro de propina, dinheiro sujo, no paletó. Em uma sociedade normal, com o mínimo de integridade e respeito ao próximo, o prefeito já teria pedido renúncia ou a sociedade já o teria tirado de lá.
Mas hoje, mais uma vez, me sinto só ao cobrar providências das autoridades para esse fato e, provavelmente, serei chamado de louco outra vez.
E nessa peleja solitária encontro refúgio na música de Sérgio Magrão e Luis Carlos de Sá, “por tanto amor e por tanta emoção, a vida me fez assim, doce ou atroz, manso ou feroz…preso a canções, entregue a paixões que nunca tiveram fim…”.
“Nada a temer senão o correr da luta, nada a fazer senão esquecer o medo. Abrir o peito a força numa procura, fugir às armadilhas da mata escura. Longe se vai sonhando demais. Mas onde se chega assim? Vou descobrir o que me faz sentir, eu caçador de mim…”.
Rodrigo Rodrigues, empresário, jornalista e gestor público.