Cidades

A engenheira Mariza Enrique Camilot nos contou como é a vida real dos trans em Mato Grosso

“Eu não conseguia me ver como menina na época. Mas sentia uma forte atração pelo universo feminino”. Foi exatamente assim que Mariza Enrique Camilot, 37 anos, descobriu os primeiros avisos, ainda na infância, sobre “transgeneralidade”.

Há um ano, Enrique Camilot decidiu assumir sua nova identidade “independente” para familiares, amigos e conhecidos. “Enrique veio do meu avô paterno Enrico. Peguei o código fonte e escolhi Mariza” – composto sugerido por um amigo de adolescência, que o aceitou na sua real pessoalidade.

“Não cheguei com a troca de nome em documentos porque não é isso que vai determinar nada pra mim. O nome que está na certidão é o meu cadastro frente ao Estado. Fora disso, se o Estado tem problema comigo, de me identificar, que pegue a minha digital ou outra coisa minha, mas não é o RG que vai dizer”, responde.

A engenheira eletroeletrônica garante que a situação não mais a incomoda e nem prejudica. Ela gerencia com tranquilidade uma empresa do ramo de serviços em manutenção eletrônica industrial e fábrica de equipamentos na capital. Ou seja, o fato de ser transgênero não interfere na qualidade do seu serviço ou no seu conceito como profissonal. “Tá lá, Enrique Camilot. A foto de um cara bonito pra caramba, boa pinta, e pronto. O cliente liga pedindo por Enrique e ‘sou eu’, normal” (risos).

Mariza mudou-se para a capital em 1984, quando tinha apenas 4 anos. Veio na companhia dos pais e três irmãos – duas mulheres e um homem. No ensino fundamental, frequentou escola da rede privada de ensino. Anos depois, foi aluna do curso de eletrônica do Instituto Federal (IFMT). Mais tarde, cursou Engenharia Elétrica na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em uma das turmas mais antigas da instituição.

Enrique e sua esposa antes da transformação

Transição

Primeiro vieram as peças íntimas, depois os batons, esmaltes, maquiagens e uma infinidade de objetos do universo feminino. Conforme a empresária, tudo começou aos 12 anos com as roupas das irmãs. Na época, ainda “menino”, entrava no banheiro e ficava por horas se olhando no espelho “só de calcinha” imaginando megaprodução – final da década de 80 – sob comando de Jânio Quadros, então prefeito de São Paulo.

“Falando daquele período, em que um ‘afeminado’ era muito mal visto, Jânio Quadros decidiu ‘limpar’ São Paulo retirando todo tipo de ‘gente pervertida’ da rua, eu ou seres como eu. Foi indo, foi indo, que quando eu cheguei aos doze anos experimentei as primeiras peças femininas das minhas irmãs e a partir daí não parei mais”, relata.

Reação das pessoas

Muitas pessoas se disseram surpresas quando Mariza revelou que era trans, principalmente a família, que chegou a procurar ajuda de médicos imaginando tratar-se de uma doença para a qual haveria explicações científicas. Os pais queriam um diagnóstico.

“Fui em psicólogo e psiquiatra aos 14 anos. A segunda me deu remédio, acho que ela queria curar a viadagem. Deu disritmia no cérebro [doença] e cheguei a tomar Tegretol (medicamento para epilepsia e dor neuropática)”, fala em tom de humor.

Em dado momento da entrevista, Mariza lembra-se dos amigos e relata a intolerância por parte de alguns, contrariados com suas vestes, comportamento e até mesmo a profissão de “macho” como ela mesma cita. “Curso de homem, né? Pra falar que é um machinho”, diz sarcástica.

Profissão 

 

De acordo com Mariza, a escolha da profissão nunca esteve ligada a fatores instintivos, muito pelo contrário. O pai foi, sim, uma influência – tanto que trabalharam juntos ‘uma vida inteira’ –, mas também pelo seu próprio interesse na área de tecnologia e desenvolvimento.

 

“Sempre gostei dessa área, o pensamento científico sempre foi muito forte. Mas me lembro que um cliente uma vez escutou minha explicação sobre transgênero durante duas horas. Porém, quando eu saí, ele disse para a secretária: ‘Nossa! O pai dele deve estar muito decepcionado’. Nem liguei”.

A pressão já na idade adulta era tão grande que “Enrique” chegou a escrever um livro-caderno, acreditando que as fórmulas, ou cálculos, poderiam ajudá-lo a compreender suas aflições. Ele ainda pensa assim, pois os números, segundo a engenheira, estão muito além das explicações que “a vida pode dar”.

Engenheiro escreveu um livro-caderno, acreditando que as fórmulas o ajudassem a compreender suas aflições

Da ficção para a vida real

Questionada sobre a novela “A Força do Querer”, de Glória Perez, Mariza se diz contente com a escolha do tema, de modo que “os dramas devem ser mostrados” como na realidade e que ela se identifica, ainda mais porque a mãe está assistindo.

“Estou achando bacana, um tabu que todo mundo quer varrer para debaixo do tapete, esconder, fingir que não existe. Os dramas têm de ser mostrados. Eu gostaria de entrar em contato com ela [Glória Perez] e agradecer, porque minha mãe está assistindo”, revela.                     

A teledramaturgia conta a história de Tereza Brand – uma das transgêneros mais conhecidas do Brasil e que carrega multidão de fãs através das redes sociais. A inspiração é apresentada na personagem Ivana – garota de família rica e tradicional do Rio de Janeiro que descobre ainda na juventude o sofrimento da filha. Em um dos últimos capítulos, a jovem revela o caso à família que se revolta com a situação e busca em profissionais uma solução.

Família ou “alicerce”

Sobre a família, Camilot explica que está no terceiro casamento – todos com mulheres – e é pai de um menino de nove anos – fruto da sua segunda relação. Em relato emocionante, o pai – na personalidade de mulher – revela como foi contar para o filho sua transformação.

“Uma das coisas que mais me encanou foi como contar pra ele. No final você descobre que pai e mãe é o mesmo nome para o mesmo significado. Contei pra ele: ‘papai é uma menina por dentro’. Ele olhou pra mim e: ‘tá bom, vai continuar sendo meu pai, continuar jogando videogame?’. Respondi: ‘vai’. Ele: ‘ah, beleza então’”, revela com os olhos marejados.

Nesse período, Edisandra Campos, de 39 anos, já fazia parte da sua vida como atual esposa. Mariza explica como foi se assumir para ela [esposa] e se surpreendeu ao receber a resposta. “Estava cheia de roupa pela casa, eu estava perdida, porque ela começou a colocar minhoca na minha cabeça e achei que ela estava de ‘sem-vergonhice’, até que um dia eu falei: ‘não tenho idade pra ficar brincando. Ou é sério ou paramos por aqui’. Respondeu: ‘tenho uma coisa pra te contar’ e me explicou. Eu disse: ‘ah, então tá bom’”, conta a administradora de empresas.

Todavia, salienta que não foi fácil passar por um processo de mudança, principalmente, com relação aos padrões de casamento impostos pela sociedade. “Se tem uma pessoa que pode escrever um manual de como amar uma pessoa é Edisandra”.

O casal está junto há sete anos e já deixa de fazer uso de hormônios femininos para tentar pelos métodos comuns uma gravidez. Desde que se assumiram, ambas decidiram trabalhar na mesma empresa e hoje em dia são sócias de vida pessoal e profissional.

Religião

À reportagem Mariza se mostrou muito bem resolvida e esclareceu a respeito da religião. Ela fez questão de exemplificar o tratamento do assunto com o único filho, que inclusive estuda em colégio católico. “No Dia dos Pais teve um evento e havia várias atividades pra fazer e ele escolheu a natação. Resultado: estava eu lá pulando só de biquíni e meu filho super alegre porque estava com o pai”, conta sorrindo. Mas Mariza quer tirar o filho dessa escola com perfil religioso no próximo ano.

Apesar de crescer num ambiente familiar e religioso, a engenheira afirma não ter laços com nenhuma doutrina, de modo que não crê no fundamento, mas, muito além disso, aos aspectos práticos demonstrados por meio de caridade. “Eu tenho religiosidade. Acredito que a ciência e a matemática vão até certo ponto. A maioria das pessoas pega a regra da religião e joga fora a religiosidade. O conceito de amor ao próximo e tudo mais vai para o ralo. Para mim, céu e inferno estão dentro da pessoa, não precisa morrer, não, para estar num desses lugares”, afirma. 

Política x LGBT

Para Mariza Camilot, a política é um caos estabelecido no país. Todavia, mudanças em algumas legislações contribuíram para amenizar os efeitos do preconceito no geral. “É só olhar pra ver que o Brasil e o mundo estão bem melhores em relação à questão do preconceito. Pelo menos tem lei que fala que é errado dar porrada na gente”.                       

Sobre o tratamento à população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), Mariza acredita que a classe política está mais voltada para outros interesses: “Homem de saia não deve ser muita prioridade na agenda deles”.                      

Procura nas redes sociais

Desde que apareceu pela primeira vez na mídia, a trans tem sido muito procurada por pessoas do mundo inteiro. Futuramente, Mariza Camilot pretende lançar um livro.

Foto de capa: Oscar Junior

Redação

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Reportagens realizada pelos colaboradores, em conjunto, ou com assessorias de imprensa.

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