Circuito Entrevista

“Quase 17 mil processos estão hoje na Vara”

Sequestros, roubos, fugas, mais violência e assim encerramos mais um ano com presídios lotados e o crime bem presente em Mato Grosso. Em entrevista exclusiva ao Circuito Mato Grosso, o juiz titular do Núcleo de Execuções Penais de Cuiabá, Geraldo Fidelis, conhecido por colocar tornozeleiras nos reeducandos e defender a migração de muitos para o regime semiaberto, traça um panorama de como o sistema está hoje no Estado. Fidelis afirma que em sua Vara 17 mil processos aguardam e dentro das cadeias “nem o chão dá para se ver”.

Confira abaixo

Circuito Mato Grosso.:Como estão às penitenciárias hoje em Mato Grosso?

Geraldo Fidelis.: Hoje temos celas na Penitenciária Central do Estado (PCE) que cabem de oito a dez pessoas, mas hoje tem 43 pessoas. E a partir daí que temos os casos de problemas de saúde. Uma pessoa de fora entra lá para a visita, tosse em meio àquelas pessoas que estão presas, contagia a outra e bum!: é uma bomba atômica. Aquele lugar é insalubre para qualquer pessoa. Não tem lugar no chão, você não consegue enxergar o chão. É um por cima do outro. Lá eles fazem rodízio para dormir, cinco pessoas ficam em pé para as outras dormirem e ficam se revezando. Não tem lugar para encostar o corpo e nisso Mato Grosso está praticando um crime de tortura. Pode ser levado a ser julgado nos tribunais internacionais, como o Brasil foi na questão da mulher vítima de violência doméstica. Isso é muito ruim para Mato Grosso. Eu estou falando da minha ciência da PCE, raio 1, 3 e 4. Não temos mais vagas em nenhum lugar no Estado hoje para colocar presos.

CMT: E quanto ao shelter (a ala especial dentro da Penitenciária Central do Estado)?

G.F.: Lá funcionam as igrejas e lá é um show. Você vai entrar lá e pensa que está em uma escola. Eu acho que você não respeita o desconhecido, a partir do momento que você conhece, você começa a respeitar. É fundamental transparência para que possamos relatar o que é verdadeiro ou não. Shelter é um espetáculo comparado com os outros raios. Tem várias salas de aula, tem superlotação também, lá existem hoje 400 pessoas.

CMT: Nos últimos dias a capital tem registrado um número alto de sequestros. Como foi noticiado, um deles foi comandado de dentro de uma unidade prisional e um dos carros-chefes do Comando Vermelho, facção que comanda os presídios no estado, são assaltos a banco e sequestros. O senhor aceita a ligação do CV com esse crime?

G.F.: Não sei dizer. Não tenho essa informação. Se tivesse, eu informaria pra vocês, mas eu não tenho. Eu estava em viagem quando aconteceu o sequestro, soube através da imprensa, mas eu suponho que tenha ligação sim.

CMT: Mas e da atuação do CV aqui em Mato Grosso, o senhor tem conhecimento?

G.F.: Eu não tenho informação para passar, isso é próprio da Secretaria de Segurança Pública. Que existe, existe. Como existem outras facções que não devem ser misturadas. A minha preocupação não é com a cor de qualquer pessoa que entra lá dentro. A minha preocupação é com a integridade física. “Ah, mas eles são pessoas que afrontam a lei”, eu estou preocupado de como o Estado vai manter a integridade física daquela pessoa e buscar a recuperação tanto quanto possível dessa pessoa, caso ela queira. Acredito na recuperação de pessoas e sou testemunha de muitas. A mim já foram feitos vários relatos de pessoas que tiveram que abraçar cores e partidos, porque se não iriam matá-los, matar a família, conhecidos. Pediram para ser enviados para outros lugares, porque não queriam fazer parte, mas eram ameaçados.

CMT: E quanto às facções dentro dos presídios?

G.F.: Existe uma guerra entre elas, é uma guerra que eu acompanho por dentro. A gente sabe que existe e inclusive é um assunto da segurança pública e não do sistema penitenciário. Reflete decisivamente sobre o penitenciário porque muitos líderes estão dentro do sistema. O fato de a ordem [de sequestro] ter partido de lá, de dentro da Penitenciária, é muito grave. Cabe às direções fazerem as varreduras, como vêm fazendo.

CMT: Que proposta o senhor defende para que os reeducandos que usam tornozeleiras eletrônicas não cometam tantos atos infracionais como vem ocorrendo?

G.F.: Aumentar a fiscalização do semiaberto. O que eu desejo é, no mínimo, um sistema buscando se espelhar no americano. Onde tem não somente o sistema de monitoramento, mas também existem assistentes sociais para fazerem a busca, para descobrir onde o preso está morando, se está tendo um contato com a família e que horas está retornando para casa. Aqui não existe nada disso. Cabe a quem isso? Ao Poder Executivo incrementar. Existe um projeto desse tipo na Sejudh (Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos), feito por uma colaboradora, que está lá esquecido. É um show de projeto, mas não sei por qual motivo não foi levado adiante. Tudo que precisamos é um rigor, para que seja cumprido à risca o que foi objeto da condenação. Está desobedecendo? Disciplina nele. Recolhe e manda para o fechado novamente.

CMT: Mas e quanto ao acusado de participar de sequestro, que ao ser preso estava usando tornozeleira. O senhor soube do caso, teve conhecimento?

G.F.: Para nós essa pessoa estava presa. O erro não foi aqui, porque eu não sei quem soltou. O sistema penitenciário pode ter soltado sem comunicar o Judiciário.

CMT: Mas ele estava usando tornozeleira eletrônica. Como isso pode ter acontecido?

G.F.: Não foi aqui que colocaram tornozeleira nele. A tornozeleira pode ter sido colocada por outro juiz, pois todos podem colocar. Eu coloco apenas em quem está na execução penal, ou seja, está no regime fechado e vai para o semiaberto. Já outros juízes, também colocam em presos provisórios, ou seja, em pessoas que vão responder a processos, mas não precisa estar atrás das grades.

CMT: Mas existe um número alto de reincidentes, não é mesmo?

G.F.: Não. E é necessário e eu gostaria muito que a Universidade Federal de Mato Grosso realizasse um estudo para mostrar que fidedignamente essa construção de que o número de reincidentes com a aplicação da tornozeleira de 2014 para cá diminuiu, e muito. Acabou? Não, tem um percentual de reincidência de 20%, mas 80% estão recuperando as suas vidas. Não adianta eu falar por falar, eu não sou estudioso, é preciso um estudo da área de sociologia, aprofundado, para saber quem são as pessoas que estão trabalhando e porque não reincidiram.  Também é preciso outro estudo para saber por que essas pessoas voltaram a cometer crimes. Onde foi a falha? Foi do Estado? Todos os números que qualquer pessoa der sobre Mato Grosso não são verdadeiros porque não existe estudo nenhum. Eu nunca fui questionado na Vara de Execuções sobre esses números. Nunca ninguém veio pesquisar.

CMT.: Aqueles reeducandos que voltam a ser presos quando estão com tornozeleira podem em algum outro momento voltar a usá-las?

G.F.: No futuro. Aqueles que regridem ao cometer novos crimes têm a pena somada com o percentual do que não foi cumprido anteriormente, faz o cálculo de quando ele vai poder no futuro ter a nova chance. Mas tem que ser cumprido não só o tempo, mas também o exame psicológico tem que ser subjetivo. Acontece que aquelas pessoas com várias reincidências não progridem, pagam toda a pena no fechado. Isso não é incomum acontecer, porque o exame psicológico aponta que se aquela pessoa for para a rua pode causar fragilidade, então ela passa a pena toda no regime fechado. Agora, ele cumprindo a pena, ele será solto.

CMT.: O sistema penitenciário nunca foi prioridade. Mas o governador disse que houve investimento na compra de tornozeleiras neste governo. O senhor acredita que isso é um investimento ou seria uma medida para se reduzir culpa em relação ao sistema falho?

G.F.: Eu vejo como natural, ele (Pedro Taques) hoje é o representante nº 1 do Estado. Se ele não fizesse esse investimento, que era necessário, seria uma omissão. Não havia mais casa de albergado aqui, então seria uma mentira, mas graças a Deus ele continuou o que começou. Presos em delegacias cumprindo pena não existem mais, todos estão em cadeias ou penitenciárias. Quem toma conta hoje é o Estado através dos agentes penitenciários e não mais policiais militares. Policial militar tem que estar na rua, na fiscalização, na repressão. Precisamos de mais agentes, fazer concurso, valorizar a carreira. Este governo foi muito correto ao valorizar a segurança pública, concurso para policial militar, para delegado, ampliou. Mas o que isso quer dizer? Mais órgãos repressores na rua, mais prisões. Mas nas prisões não se aumentou uma cela sequer, então tudo isso comprimiu o sistema. Apesar dos pesares, o investimento feito nos últimos dois anos, feito pelo ex-governador Silval Barbosa nessa área, que eu acompanhei, foi realmente muito importante. Ele valorizou o sistema penitenciário. Até é um paradoxo, porque ele foi o primeiro a utilizar o que construiu. O Silval construiu o Centro de Custódia da Capital e lá ficou por dois anos e com regalia nenhuma.

CMT: O senhor chegou a ter contato com o ex-governador Silval Barbosa?

G.F.: Sim, com todo mundo eu tenho contato.

CMT: A Sejudh já disse que adquiriu novos equipamentos para bloquear a entrada de celulares, mas, como sabemos, o uso do aparelho dentro das cadeias é normal.

G.F.: Essa conversa eu já estou ouvindo há quatro anos. Têm as situações dos aparelhos de captar os sinais, aí a administradora das redes gera mais sinais para aqueles que estão fora do quadrante da penitenciária e isso estraga o bloqueio.  É uma situação muito grave, muito séria.

CMT: Então seria o caso de continuar evitando que esses aparelhos entrem nas penitenciárias.

G.F.: Existe uma lei federal que está sendo organizar para determinar que as próprias operadoras invistam nessas áreas, mas por enquanto está sendo discutida.

CMT: Está sendo falado sobre a questão de marmitas sendo servidas estragadas na Penitenciária Maria do Couto. O senhor tem consciência disso?

G.F.: Não só lá, mas também na PCE. Eu tenho filmagens que mostram a entrada de uma marmita em que o feijão que era serviço tinha dois grãos boiando e outros afundados numa água que mais parecia uma baba, suja. Isso não existe. Está pagando certinho a empresa? Então tem que fornecer corretamente a comida. Porque isso implica em tortura. Tem que ser investigado e será investigado.

CMT: Foram registradas recentemente fugas de algumas cadeias do Estado. Em Poconé e outras. Esse risco é iminente em todas as cadeias?

G.F.: Sem sombra de dúvida. Aqui em Cuiabá é um risco. Eu costumo dizer que o sistema está sendo seguro pelos valentes agentes penitenciários. Porque apesar do número pequeno, estão segurando o sistema. A situação de Poconé é um exemplo, a de outras cidades é um exemplo. Essa fragilidade é muito clara.

CMT: O senhor disse que acredita no caso de recuperação desses infratores. Como a gente pode passar essa imagem para a população? Porque atualmente a população está descrente da Justiça.

G.F.: Esse é o senso comum. Não é à toa que tem candidato a presidente da República que está fazendo campanha em cima do senso comum. Contra pessoas LGBTs, contra tudo e todos, que todos querem ouvir. Como eu quero ouvir que ao sair à noite eu não serei assaltado na rua, quero ter a segurança de ver meus filhos crescerem sem serem vítimas de situações de violência na rua, quero que as mulheres não sejam vítimas de violência, então é fácil falar. Mas é preciso respeitar a todos e principalmente é preciso fazer as coisas com transparência. Não se respeita aquilo que não se conhece. O que gera notícia? O sequestro. Uma violência que tem curso superior contra uma mulher. Mas como combater essas situações das pessoas que saem do sistema? Mostrando que apenas 20% voltam, caem e acabam retornando, mas os 80% não. Cadê esses 80%? É por isso que o Estado precisa de uma equipe de assistentes sociais para fiscalizar, mostrar onde elas estão, dar suporte para que elas não voltem para o crime. A grande preocupação é esses batismos [facções] que forçam a pessoa a entrar e cometer crime aqui fora.

CMT: Então o Estado teria que investir nisso, em mostrar esses 80% que estão sendo recuperados?

G.F.: Sim, tem que investir nisso. Tem que mostrar o outro lado, a possibilidade de ter uma vida melhor. Eu entendo aqueles que não querem dar emprego para um preso com tornozeleira, eles têm que ficar receosos mesmo, mas aí cabe ao Estado buscar alternativas para que esse preso não fique na rua sem ter o que fazer. Quebrar o senso comum. É engraçado os candidatos que falam que bandido bom é bandido morto. Eles falam isso até um filho deles ser preso por porte ilegal de arma, tráfico de drogas, aí eles vão falar: “opa, pera aí, não pode existir pena de morte, não. Não existe alguém que não tem um parente ou amigo que já não foi preso. Vai querer que morre? Tem que matar, mas que não seja meu amigo, meu parente, meu irmão. Aí fica fácil falar. E quem de nós nunca errou na vida? É preciso recuperar uma vida.

CMT: Já que o Estado não tem dinheiro para investir no Sistema Penitenciário, o senhor não acredita que seria melhor privatizar?

G.F.: De maneira alguma. Isso aí é coisa de americano, onde 60% voltam para o crime. Lá não se recupera nada. Quanto mais preso tiver, melhor para eles. Não há investimento em recuperação, esse sistema americano está equivocado. Lá não se tem nome de presos, lá existe número. Aqui se tem nome, tem que humanizar. No sistema privatizado não se contam pessoas, se contam números, quanto mais número mais dinheiro para o bolso deles. Querem cash. Temos que melhorar as pessoas para que elas melhorem e não que continuem lá.

CMT: Sobre a prisão do ex-bicheiro João Arcanjo, ele pode ganhar a liberdade com o uso da tornozeleira?

G.F.: Não é comigo esse processo, é com o Dr. Jorge Tadeu.

Redação

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