Cidades

“CARNE”: “Um osso duro de roer”

O açougue do bairro abre-se às 19 horas em ponto. Clientes desavisados começam a adentrar ao espaço, pachorrentamente curiosos. Num espaço com clima, tom e ar de penumbra, suspiros presos ao diafragma, quase sem respiração, apenas espasmos. A plateia se organiza para arrematar um lote da melhor carne. Açougue lotado. É dia de promoção!

Ali, expostas à freguesia, carnes de várias espécies: cruas, frias, quentes, assadas, marinadas, insossas, secas ao sol, laminadas, grelhadas, congeladas, com ossos, desossadas, ao ponto e ao dente. Uma espécie de, tem pra todos os gostos, podendo atender a todas as memórias e sentidos. Na balança, o peso maior é pago em silêncio. Quem mais se construir ausente de sua memória, leva o melhor lote, mas pagará caro por isso. Estará açougueiro de si mesmo, sem mesmo saber esquartejar a sua própria carne, preso à sua memória pública, às suas vísceras sociais e aos seus

sentimentos políticos.

Uma açougueira rumina o sabor e o sangue de uma costela de ripas largas num aviso-ação: esse prato não está à venda! Somente para degustação! Uma degustação construída numa imagem com memória evocada. Ali está presente a memória coletiva, instigada e corrompida pela ação individual. Tem um mastigar construído por um silêncio sobrenatural da ação orgânico sexual; tem sabor, clima e cheiro de alcova.

Um asceta incorporado da sua deidade anuncia os devaneios da vontade. A vontade de sua memória, de sua narrativa psicografada em sua autobiografia, sem o uso do verbo, mas das imagens e signos em seu estado de secundidade: significante e significado, luta e confronto numa só pessoa. Em sua aura residem os corpos aflitos descarnados pelas tempestades dos afetos sociais. Um corpo exposto à cena da memória imagética, cujo ator se transfigura e se deleita na contramão da estética da carne corporal mais sadia, mais saborosa, mais diet. O ator se constrói na própria carne humana de qualquer sociedade: podre, fétida e degenerada, construindo não só a sua narrativa, mas a narrativa coletiva, de atores e plateia, onde o elenco se afina como luz de pino, chamando o olhar e o paladar de todos, para um só foco, mesmo estando todos, em açougues distintos, interligados pelo balcão da memória.

Percebe-se nesse conjunto de ressignificação corporal, empregado pelo grupo de atores e atriz, uma ousada tomada de limpeza e purificação. Um conjunto de corpos que não estão nem para o humano, nem para o metafísico. Corpos autônomos, com resistências e intensidades; corpos sem órgãos no pensamento artaudiano ao construir um teatro ritual na busca de alcançar a essência da liberdade. Por isso não se trata de uma narrativa construída ao apego de uma dramaturgia convencional, mas sim, de uma narrativa também visceral, onde os corpos estão eminentemente em laboratório, talvez, com o desejo de que todos se sintam realizados, como era também o desejo de Artaud com o seu Teatro da Crueldade.

A narrativa não está somente na memória presente, mas também na memória ausente, no interior da memória, na carne, no osso, no buco do osso, no ossobuco, no chambão da vitela humana. Por isso essa obra nos coloca diante de uma espécie de espectros de emoções, físicos e biológicos e ao mesmo tempo, nos imerge numa catarse, nos remetendo ao que nos instiga permanecer ali, presentes, fazendo parte da cena, mesmo estando do lado de cá do balcão do açougue. Talvez, estamos ali, comercializando a nossa própria carne social, que ainda não encontramos no açougue, ainda não foi exposta e nem separada em partes, em lombos, em quartos dianteiros ou traseiros; ela está ali na qualidade da espécie maturada, vivida por cada memória, por cada ator, atriz e pela plateia integrada às cenas.

A melhor carne é a que está mais perto dos ossos; por isso “Carne – uma narrativa sobre a memória” nos faz roer o osso até chegar ao buco, ao tutano, ao cerne, ao gozo, até quase não sobrar mais nada. “Carne” nos rói de longe, cautelosamente como ruminam os bois em pasto-cena-aberta, destruindo os nossos tutanos sem pressa, para imprimir no seu roer, uma atmosfera de orgasmo, deixando uma esperança de prazer na presença de outras memórias ao purgar demônios e espíritos. Aqui, habita a memória tanto individual, quanto coletiva. Ficamos às vezes instigados a entrar na cena, mas também, a sair dela. Ali, ninguém é plateia ou público, esse espaço ficou destinado aos que não tiveram o prazer-coragem de assistir e a conviver com “Carne” e de expor a sua própria carne ou de revisitar a sua memória individual, coletiva e social.

A peça é um estabelecimento de convivência e de relações epidérmicas, não está posta a uma assistência tão somente visual e sim ao sentir, viver; é orgânica, é visceral. É esse o viço carnal que nos instiga ao cheiro de outras carnes, ao sabor de outros paladares sociais, na construção de outras memórias e devaneios.

É uma obra que todos devemos ver várias vezes. Ela nos sensibiliza, nos maltrata, nos instiga, nos coloca de frente à dor, à vida. Mas é uma carne que nunca estará à venda em seu próprio açougue, ou no açougue do seu bairro, no açougue mais perto. É preciso ir mais longe, ir além da secundidade e se construir terceiro, na inteligibilidade, na representação e interpretação do mundo. “Carne” é aqui “um osso duro de roer”. É preciso dentes afiados para se fazer presente neste banquete dramatúrgico; são necessários talheres esculpidos em ferro fundido para traçar-lhe as fibras irmanadas de interrogações e inquietudes; é salutar à saúde mental, esse nosso devaneio social e político que já anda desgastado nesse universo contemporâneo.

A melhor carne é aquela que está no prato do outro. Por isso a Solta Cia de Teatro se expõe segura de seu processo de construção dramatúrgico, sem reticências ou delongas ao proferir o seu discurso social. Ela vai direta na carne, no osso, afronta os desavisados e constrói signicidade e transformação social, cumprindo com o seu papel político de homens e mulheres de teatro. Convida-nos a refletirmos sobre a nossa sensibilidade e a degustarmos da nossa própria carne cultural, e também, a comer a força inimiga do estrangeiro, do estranho, do outro, num pensamento antropofágico oswaldiano, como que atentando para a nossa própria memória de pertencimento humano, nos avivando que necessitamos da carne do outro. Nos alicia na dimensão do afeto sociopolítico, nos seduz e nos envolve sem rasurar nossa memória primeira, diante de um teatro autêntico, vivo, com cheiro e presença do que mais necessita a arte cênica: a ação política, sem nos oferecer respostas e sim, inquietações. Trata-se de um grupo de estudiosos e pesquisadores da cena, expondo-se às intempéries das experimentações cotidianas, sem medo de se dependurarem nos colchetes de qualquer açougue e de colocarem as suas carnes de criadores, às especulações do pensamento social de qualquer freguesia. Uma trupe que se irmana a correr riscos, como é o destino do teatro. echo

Uma montagem construída ao sabor do coletivo, de pensamento fixado na unidade de conjunto. Constroem uma autobiografia com a presença de literatura documental e nos dão o prazer de juntos, gritarmos por um momento de resistência e resignação em meio a tantas mazelas políticas, opressões e ditaduras.

Se a Solta Cia de Teatro se solta corajosa diante de uma construção teatral política para nos valermos de uma transformação social e nos instiga a refletirmos sobre nós mesmos, também me solto a parabenizá-los. Salve “Carne”! Salve a Solta! Salve a Memória!

___________

Carlos Ferreira é Doutorando em Educação e Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT.

Professor de arte da rede pública de ensino de Mato Grosso. Ator cuiabano.

Espetáculo: Carne – Uma narrativa sobre a memória

Local: Cine Teatro Cuiabá

Datas: 09 e 10 de dezembro de 2017

Horário: 20h30

Ingressos: R$ 20,00 inteira e R$ 10,00 (meia solidária para quem levar 1kg de alimento não perecível)

Classificação indicativa: 18 anos

FICHA TÉCNICA

Criação e atuação: Benone Lopes, Everton Britto, Luciano Paullo, Talita Figueiredo e Yandra Firmo

Performer convidado: Ismael Diniz

Direção: Everton Britto, Luciano Paullo e Yandra Firmo

Estratégias audiovisuais: Gilson Costta

Desenho de luz: Everton Britto e Marcelo Peske

Operação de luz: Marcelo Peske

Design gráfico, fotografia e contrarregragem: Fred Gustavos

Cenografia e figurinos: SOLTA Cia de Teatro

Maquiagem e operação de som: Leandro Brito

Produção: Naiana Leotti

Os ingressos estarão disponíveis na bilheteria do Cine Teatro e o público poderá contribuir com a entrada solidária. Levando 1 quilo de alimento não perecível, o espectador terá direito à meia entrada (R$ 10,00).

CONTATO

Everton Britto: 65 98159-1571

Naiana Leotti: 65 99226-1989

Cine Teatro: 65 2129-3848

www.soltaciadeteatro.com.br

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