O ódio, o desprezo ou sentimento de perda do controle da propriedade sobre as mulheres, comum na sociedade machista, são os principais fatores que envolvem o feminicídio. A denominação é relativamente nova, mas os crimes desta natureza ocorrem desde os primórdios das sociedades humanas. Em Mato Grosso, a Promotoria Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher contabiliza os casos. Foram 35 casos de feminicídio consumados e mais 42 tentativas de março de 2016 a março de 2017. O primeiro colocado do ranking de feminicídio é o município de Rondonópolis (210 km de Cuiabá), com cinco consumados e cinco tentativas. Na outra ponta, um dado assustador: a Secretaria de Estado e Segurança Pública (Sesp) registou 17.514 Boletins de Ocorrência em 2016 feitos por mulheres agredidas. Em 2017, de janeiro a agosto, este número já chega a 19.804 ocorrências.
Em 77% dos casos o homem não aceita o fim do relacionamento
A promotora de justiça Lindinalva Rodrigues, da Vara Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, calcula que 77% dos crimes de feminicídio ocorrem quando o homem não aceita o fim do relacionamento.
“Quando a mulher não quer mais nenhum contato com o agressor, é o momento em que ele atenta com a vida da vítima e também contra quem está próximo dela”, observa.
Ela alerta que tudo começa com um empurrão e que em qualquer tipo de agressão sofrida a vítima deve fazer um Boletim de Ocorrência (BO). “O feminicídio sempre vem antecedido de agressões leves, como empurrões, palavras de baixo calão, entre outros, até evoluir para o assassinato”.
O feminicídio, qualifica o juiz Jamilson Haddad Campos, da 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, é quando a pessoa é assassinada pela condição de ser do sexo feminino.
“É um homicídio doloso qualificado contra pessoas do sexo feminino, quando há um menosprezo, uma desvalorização da mulher. Nem toda morte de mulher é feminicídio”, conta o juiz, em cuja vara há 5.256 processos em andamento.
De acordo com Lindinalva Rodrigues, todos os agressores que cometerem este tipo de crime em 2017 estão presos. “Todos foram presos e punidos com penas acima de 20 anos de reclusão”.
Agressores querem deixar marcas permanentes ou tirar a vida
A delegada Juliana Chiquito Palhares, da Delegacia de Homicídio e Proteção a Pessoa (DHPP), conta que o agressor sempre ataca a vaidade da mulher. Por isso a tendência nos crimes de mortes de mulheres é a desfiguração do rosto.
“Eles querem fazer algo que deixe marcas permanentes, como desfigurar o rosto com golpes de objetos ou ácido, desfiguração do seio e até casos de arrancar fetos quando a vítima está grávida”, destaca.
A principal característica do homem que comete feminicídio é a possessão e sentir que tem domínio sobre a mulher, segundo a titular a delegada Juliana Chiquito Palhares. “Normalmente o homem quer o domínio total da mulher, ele quer decidir o que ela deve vestir, quando ela deve sair de casa”, relata.
Juliana Palhares fala que a maioria dos feminicídios acontece em casos de violência doméstica. “Normalmente o homem quer se impor, não se importa com a vontade da mulher, parece algo psicótico. Eu gostaria de entender o sentimento do agressor. Normalmente cometem estes crimes por coisas fúteis”, comenta.
A delegada alerta que muitas vezes a mulher não denuncia seu companheiro porque acham que ele nunca vai atentar contra a sua vida. “A dependência emocional destas mulheres atrapalha e as levam a perdoar as agressões. Acreditam na melhora da relação”.
Enfermeiro assassinou ex-namorada e confessou friamente o crime
Um caso que logo vem à memória da delegada Juliana Palhares é o da estudante de direito Ivone Oliveira Gomes de 23 anos, uma das quatro vítimas de feminicídio ocorrido em Cuiabá. Ela foi morta pelo ex-namorado, o enfermeiro Luiz Otávio da Silva, com golpes de faca na noite de 15 de março de 2017.
Ivone quis terminar o relacionamento, mas não foi aceito pelo autor do crime. Que confessou passo a passo o que aconteceu na casa da namorada para a delegada Juliana.
“Ele, o tempo todo, falou que achava que ela estava traindo-o. Como ele era formado em enfermagem, ele sabia onde perfurar e também sabia o momento que ela ia desmaiar no momento do sufocamento; foi um crime muito técnico”, declarou a delegada.
“Ele deu uma facada em cada familiar”, diz mãe de vítima
Jovem, sorridente e independente. Assim era Gislaine Paola Neves, que tinha 26 anos quando foi assassinada com seis facadas pelo ex-namorado Neyli Silva Santos no dia 30 de dezembro de 2009. Segundo a mãe de Paola, Geiza Aparecida Santos Neves, Neyli começou a perseguir a jovem após a filha terminar o relacionamento. Chegou até a destelhar a casa para ver se Paola estava com alguém.
“Ele fez de tudo de ruim com minha filha após ela terminar o namoro. Ela inclusive saiu do emprego de que tanto gostava por causa de suas perseguições”, disse a mãe.
Neyli confessou o crime cinco dias após matar Paola. Os dois chegaram a morar um período na mesma casa, conforme diz a mãe da vítima. “Fiquei sabendo um tempo depois da morte da Paola que ele a agredia. Quando ela estava machucada, não aparecia aqui em casa, ficava escondida”, falou.
A mãe disse que um dia antes Paola tivera a bolsa roubada por Neily que a jogou em um córrego. Segundo Geiza, no dia seguinte ela estava na casa de uma amiga quando Neily falou que se Paola quisesse ver os documentos era para ir à casa dele.
“Me contaram que uma amiga dela impediu a Paola de ir. Ela disse que ia pegar os documentos e ia direto para a delegacia fazer Boletim de Ocorrência (BO) de ameaças contra Neily. Eu estava pressentindo que algo ruim ia acontecer naquele dia”, conta a mãe.
Logo após cometer o crime, ele ligou para um tio que é casado com uma amiga da família que avisou a Geiza da morte da filha. “Ele deu seis facadas nela, e acertou cada um de nós familiares. Eu superei de certo modo após esses sete anos, porque sei que ela está em um bom lugar”, conta.
Geiza ainda fala da saudade que sente da filha. “Todo dia sinto falta dela aparecendo com a toalha na cabeça me dando bom dia. Todo dia quando ela chegava ao trabalho me ligava… lembro de cada detalhe da nossa convivência”, conta.
A mãe da vítima disse que o que mais a machuca é a impunidade. “Ele está solto, não pagou pelo que cometeu. Ele matou uma família, não sei o que faria se o visse. Não quero o mal dele, nem que ele faça novamente um crime como este. Ele é pai de uma menina, ele tem mãe e irmã. Não desejo que ocorra o mesmo crime com os familiares dele”, declara a mãe.
Deu tijoladas no rosto da vítima e a estrangulou
Um caso premeditado foi o de Dineia Batista Rosa, segundo a delegada Juliana Palhares. Ela foi morta pelo namorado Welington Fabrício de Amorim Couto, de 34 anos, no dia 20 de maio deste ano.
A vítima foi encontrada no banheiro da casa que ela tinha comprado para dar de presente para a sua mãe. Ele a espancou e deu tijoladas no rosto da vítima e depois a estrangulou com um fio elétrico. O filho de 8 anos de Dinéia presenciou a morte da mãe e foi ameaçado pelo criminoso.
Welington já havia sido condenado a 17 anos de prisão pela morte da ex-mulher Danevimar da Silva Dias, de 23 anos, em 2008, também em Cuiabá. Ela também morreu estrangulada com fios elétricos.
Projetos amenizam ausência de políticas públicas
A promotora Lindinalva Rodrigues acredita que a única maneira de combater a violência doméstica é por meio de políticas públicas que promovam a recuperação tanto da mulher agredida quanto do homem agressor. “As políticas públicas são mais importantes do que a punição”, defende.
Como 30% dos casos de violência doméstica são causados pelo o uso de álcool e drogas e não há uma estrutura pública para a reabilitação dessas pessoas, a situação se agrava.
“Enquanto não tivermos atendimento especializado, projetos e ações educativas, não conseguiremos proteger as mulheres, mas apenas punir os agressores”.
Neste sentido, a promotora lembra que o MPE desenvolve o projeto Homens que agradam não agridem que consiste em promover rodas de conversa nas empresas, indústrias e nos canteiros de obras para falar com os colaboradores por que não se deve violentar uma mulher. “Mas não temos isto em larga escala”, lamenta Lindinalva.
O juiz Jamilson Campos idealizou o projeto Constelação com auxílio da orientadora sistêmica Gilmara Thomé. “Senti a necessidade de implantar um protejo que ajudasse as vítimas de violência doméstica a entender o contexto das relações familiares em que as situações de agressão ocorrem”.
O magistrado ainda desenvolve outro projeto para os agressores, com palestras, reuniões, reflexões sobre a cultura patriarcal, de como a violência afeta as crianças, entre outras. “O Brasil é o quinto país com o maior número de casos de violência doméstica, os homens têm que entender que nada justifica as agressões”.