Jurídico

Juiz desenvolve modelo para transformar conduta de agressores em Várzea Grande

Juntos há 18 anos, o pedreiro João* e a empregada doméstica Eliane* registram muitas histórias em comum. Tiveram cinco filhos e, apesar da pouca idade, já têm até um neto, que vive com o casal e os demais filhos numa casa em Várzea Grande, Mato Grosso. O relacionamento, que poderia registrar apenas bons momentos em família, ficou marcado por dois fatos que hoje trazem vergonha a João: violência doméstica praticada contra sua esposa, sempre tendo como pano de fundo o consumo do álcool.

O primeiro boletim de ocorrência contra o pedreiro foi registrado há seis anos. Ele conta que uma simples discussão acabou se transformando numa ‘bola de neve’ e, por isso, acabou agredindo e ameaçando a esposa. À época, não chegou a ser preso. Contudo, este ano novamente a bebedeira o fez perder a cabeça e um novo caso de violência foi registrado. Dessa vez, as consequências de seus atos foram mais drásticas: João ficou 39 dias preso e, mesmo com o perdão da esposa e da retirada da queixa contra ele, ele está sendo processado.

“Tenho vergonha pelos acontecimentos. Achei que nunca uma coisa dessas ia acontecer na minha vida e acabou acontecendo. Agora tenho tamanha consciência do que é uma agressão, um problema com a Justiça, e é muito difícil lidar com isso. Me sinto envergonhado em frente dos meus amigos, em frente dos meus parentes, até em frente dos meus filhos. Sinceramente não sabia que xingar era crime. Sabia que era uma briga, mas achava que era uma discussão normal de família. Às vezes as pessoas falam ‘ah, é só uma discussão’. Mas na verdade a gente vai vendo que não é bem assim. Discussão verbal é sim uma agressão sim, pelo que entendo agora das coisas”, assinala.

João está participando de um projeto inovador desenvolvido desde maio pela Vara de Violência Doméstica e Familiar da Comarca de Várzea Grande, sob condução do juiz Eduardo Calmon de Almeida Cezar, denominado “Bem de Família”. Uma vez feita a prisão em flagrante do agressor, ele é encaminhado à Delegacia e, uma vez preso, segue para o sistema judiciário. “Havendo a possibilidade de esse agressor ser solto sem que haja risco para a vítima, ele comparece em juízo à audiência de apresentação e nesta audiência são fixadas algumas condições para sua liberação provisória. Entre as condições fixadas está a participação no projeto Bem de Família”, explica o magistrado.

A iniciativa é voltada a promover a paz nos lares e tem como foco o tratamento do agressor. O magistrado conta que quando foi designado para a Vara de Violência Doméstica de Várzea Grande, em novembro de 2016, percebeu a existência de uma ampla rede de proteção para a vítima, no entanto, ao agressor restava como única medida a prisão. “Até então o agressor era preso, segregado do lar, e resolvia-se temporariamente o problema. Como a prisão não pode ser eternizada, uma vez solto o problema voltava a acontecer. Você tratava a vítima, mas não aquilo que muitas vezes deu causa à agressão”, observa o juiz.

O “Bem de Família” consiste em fornecer assistência para o agressor no sentido de iniciar um tratamento adequado por meio da comissão multidisciplinar do Fórum, formada por assistente social e psicóloga, capaz de identificar eventual patologia ou problema que aquele cidadão possa estar sendo acometido e encaminhá-lo para tratamento. Além disso, na primeira etapa da iniciativa o agressor tem que participar, ao todo, de seis reuniões mensais, os chamados círculos restaurativos.  

“Naquele momento ele vai disfrutar de palestras, diálogos, vai fazer uso da palavra, para que possa expor as causas, expor os seus problemas, e neste momento, a psicóloga e a assistente social, verificando alguma situação que possa dar início a um tratamento, o encaminha para um dos nossos órgãos parceiros”, ressalta o magistrado.  

Numa segunda etapa, o projeto vai atender as vítimas, também em forma de círculos restaurativos, mas separadamente do agressor. E a terceira etapa prevê encontros mistos, de vítimas e agressores. “Mas inicialmente não da vítima e agressor do mesmo processo, mas sim da vítima com agressores diferentes. Para que cada um, em uma plataforma de círculo, possa expor as razões pelas quais veio a cometer aquele ilícito, como que a vítima pensa acerca do que ela suportou, mas sempre respeitando a vontade da vítima de querer participar ou não na presença do seu agressor”.

Conforme explica o idealizador da iniciativa, além de promover a cultura da paz, a meta é obter dados estatísticos oficiais com relação à violência doméstica em Várzea Grande. “Esse projeto vai nos subsidiar para que depois do prazo de um ano nós possamos identificar, por exemplo, em determinado bairro qual é a natureza do crime praticado, a natureza e o perfil do agressor, as condições sociais e econômicas que o motivaram a cometer aquele ilícito, para que a gente possa fazer outro trabalho paralelamente ao nosso projeto, com o objetivo de atender aquela comunidade que tiver maior incidência em determinado crime ou outro”.

No último dia 10 de agosto, ao participar de seu terceiro círculo, o pedreiro João enalteceu a iniciativa. “Esses encontros estão sendo muito bom pra mim, estou tendo muito conhecimento desses assuntos agora. Da primeira vez não teve isso, agora dessa vez estou tirando como lição, aprendendo muita coisa. Estou tendo paciência, sendo paciente. Tenho certeza que esse tipo de coisa não vai mais acontecer devido à circunstância que sofri e devido às aulas que estou tendo, o que eles estão me passando. O que estou aprendendo aqui estou repassando para algumas pessoas lá fora, para os meus parentes, falando ‘não faça isso’. Essa aula que estou tendo aqui é uma aprendizagem que estou levando para a vida”.

*Nomes fictícios para preservar a identidade dos personagens

  

Redação

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