Ana Paula Poncineli |
O drama dos refugiados é destaque da mídia internacional. A imigração forçada, no entanto, não é uma tragédia recente e se repete ao longo da história da civilização. Análogo ao drama internacional, no Brasil, a miséria dos retirantes do sertão não é passado e, sim, história atual, conforme registro da Defesa Civil de Pernambuco, que apontou, em 2016, o sofrimento com a seca de cerca de um milhão e meio de pessoas.
Apesar de escrito há tempos e publicado em 1938, o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, descreve a vida de retirantes nordestinos como espelho dos eventos contemporâneos. O período histórico da publicação do livro corresponde à ditadura do Estado Novo. A obra de Graciliano conta a história de uma família de retirantes oprimida pelas dificuldades causadas pela seca do sertão, que sofre por viver subjugada tanto pelo patrão como pela força pública. Tanto o meio natural como o meio social são inóspitos, impróprios para se viver, lugares onde não é possível a superação das adversidades, muito menos transformar a realidade. A única possibilidade é a busca contínua por um lugar no qual a vida pode ser melhor, contudo, essa busca é cíclica. Vidas Secas começa contando da mudança da família de retirantes e termina com a mesma situação, qual seja, o abandono do sertão para seguir em direção ao litoral.
A temática regionalista é característica da segunda fase do Modernismo, embora o sertão já tenha sido abordado na obra de Euclides da Cunha, no início do século XX. A perspectiva euclidiana, do contraste entre o litoral desenvolvido e o sertão atrasado, é precursora da abordagem elaborada por Graciliano Ramos em Vidas Secas. A modernização do país, que se iniciara com a Proclamação da República e continuara com ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, não diminuíra as desigualdades sociais nem amenizara as diferenças regionais. O sertanejo permanecia abandonado, sem a interferência do poder público. A única chance de sobrevivência era fugir da seca e da miséria, em contínuas mudanças, sem parada certa.
A opressão do meio ambiente inóspito, associada à miséria, é simbolizada pela dificuldade de comunicação dos personagens. Essa dificuldade caracteriza o oprimido, sem cultura, que, por não saber se expressar, não tem meios para evitar ser enganado pelo patrão nem para se defender das arbitrariedades do poder público, representado pelo soldado amarelo na obra. A falta de habilidade dos personagens para se comunicarem não diminui a força afetiva dos acontecimentos mais insignificantes. Graciliano Ramos cria um ambiente imaginário pessimista, no qual não só a terra é seca, mas também o homem. A vida é difícil e não há esperança de mudar nada. A opressão do homem do campo é simbolizada pela história da família de Fabiano, que não consegue lutar contra a injustiça social. que não tem meios para vencê-la. A revolta causa mais sofrimento e mais opressão. É como enfrentar a seca, só se pode fugir dela e nada mais.
A opressão é representada também pelas dicotomias racional e instintivo, homem e animal, que simbolizam a despersonalização dos filhos de Fabiano e Sinhá Vitória. Os meninos são chamados de filho mais velho e filho mais novo. O que contrasta com a humanização do animal, pois a cadela de estimação da família tem nome: chama-se Baleia. Fabiano assusta-se ao perceber sua proximidade com o animal e precisa dizer para si mesmo que Baleia é bicho. A despeito dessa afirmação, o personagem conclui que sua vida não difere dos animais que tem para cuidar. Ele não pode escolher seu destino ou influenciar seu ambiente. Fabiano conclui que ele é um bicho, como no episódio em que vai preso injustamente.
A opressão é o tema de Vidas Secas. A ditadura do Estado Novo estava em vigor, quando Graciliano Ramos publicou o livro. O autor havia sido preso, em 1936, em razão de sua simpatia pela ideologia comunista, porém não recebeu nenhuma acusação formal e não teve direito de defesa. Como o personagem Fabiano, que não tinha meios para enfrentar a seca, o autor não teve meios para enfrentar a repressão política. O livro reflete o mesmo drama dos refugiados internacionais como dos atuais retirantes nordestinos.
Ana Paula Poncinelli G. Rodrigues é Mestre em Teoria Literária e Gestora Governamental.