Pesquisa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça revela que 80% das mulheres agredidas não querem que o autor da violência seja punido com prisão. A pesquisa “Violência contra a Mulher e as Práticas Institucionais” apurou também as condições de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, criados pela Lei Maria da Penha, e Defensorias Púbicas em 11 cidades de seis Estados brasileiros.
Entre as alternativas apontadas por essas vítimas, 40% disseram que os agressores – com quem ela mantém ou manteve uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto – devem fazer tratamento psicológicos e/ou com assistentes sociais, 30% acham que eles deveriam frequentar grupos de agressores para se conscientizarem, 10% acham que a prestação de serviços a comunidade é a melhor alternativa penal.
Os pesquisadores também apuraram que 9% das mulheres acreditam que tenham feito alguma coisa para 'merecer' a agressão. “9% me parece que é um número significativo e que merece atenção do poder público”, diz Cristiane Brandão, professora Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora da pesquisa. Ela explica que o número é um sintoma da sociedade brasileira, “machista e patriarcal”.
“Esse número não quer dizer que elas se sintam a causadora da agressão, como se os homens tenham que se defender delas, mas elas tentam remediar a situação atribuindo a violência a outros fatores. Ela pode dizer que foi negligente na relação, não deu atenção ao companheiro, não cuidou do asseio das crianças. Ela se convence de que de algum modo se omitiu no papel estipulado ao gênero”, diz Cristiane.
Para Cristiane, a prisão também não é a melhor alternativa. “A função do Judiciário não é só impor uma pena de reclusão, que impede que ele pague a pensão para o filho, e joga o agressor em um ambiente extremamente machista e que fomenta a violência. O Estado tem que atuar mais na prevenção, pensar em medidas que viabilizem uma educação não sexista a médio e longo prazo”, diz.
A coordenadora da pesquisa elogia a utilização de grupos de reflexão, no qual homens culpados de agressão frequentam reuniões acompanhadas de psicólogos e assistentes sociais para entender a cultura machista em que estão inseridos e a violência que praticaram. “A medida está sendo muito bem vista porque força o sujeito a comparecer nessas reuniões. Ele acaba ouvindo outro lado, que ensina a não permanecer na violência, até porque muitas vezes ele nem sabe como sair desse ciclo”, diz.
Condições de atendimento
Além da violência sofrida dentro de casa, Cristiane também chama atenção para ao atendimento muitas vezes precário que as mulheres recebem quando procuram as instâncias do Judiciário.
“O que mais me chamou a atenção na realização dessa pesquisa foi notar a pouca preparação do Poder Judiciário para lidar com casos de violência doméstica, apesar de a lei Maria da Penha estar em vigor desde 2006. Falta um atendimento especializado, com escuta mais humanizada e com apresentação de soluções viáveis e que fujam ao esquema de resposta criminal a um problema tão complexo”, afirma Cristiane.
Uma equipe de 11 pesquisadores avaliou as condições dos Juizados e Defensorias em 11 cidades nos Estados do Pará, Alagoas, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. A pesquisa demorou oito meses para ser concluída.
O levantamento apontou problemas considerados empecilhos para o atendimento efetivo das vítimas de violência doméstica, como falta de espaço físico adequado e grande demanda de casos para poucos profissionais, Juizados especializados e Defensorias.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o levantamento aponta que o Tribunal de Justiça recebeu 31.083 novas ações em 2011, atingindo geral de 49.229 processos durante o ano, e tiveram 14.804 sentenças proferidas. Nas demais comarcas do Estado, foram 57.487 de novos processos naquele ano, obtendo-se um total de 66.571 ações, com 26.172 sentenças proferidas. Só no Juizado de Violência Doméstica e Familiar da cidade do Rio de Janeiro foram abertos 13.635 novos processos.
Mas o número de processo não é acompanhado por quantidade de funcionários suficientes, diz a pesquisadora Cristiane.
“É uma rotina de pressa no julgamento, falta de profissionais no cartório, número de defensores suficientes para atender essa mulher e falta de capacitação exclusiva para promover uma escuta humanizada”, afirma. “Hoje, na Defensoria de muitos juizados visitados, só temos e quando temos um único defensor para atender a vítima. Muitas vezes, elas são atendidas por estagiários, sem conhecimento técnico suficiente e, muitas vezes, sem a compreensão ideológica necessária”, diz Cristiane.
Nas Defensorias, a pesquisa cita como exemplo o Estado do Paraná, que até dezembro de 2013 contava com dez defensores, mas nenhum que atuasse perante o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Em São Paulo, cita o relatório “a Defensoria Pública conta com ao todo 610 defensores, mas apenas uma atua integralmente no atendimento à vítima, e outra acumula esta função com outra perante o órgão em que atua”.
Além disso, o relatório cita problemas como “falta de informações precisas e adequadas, atrasos, cancelamentos não informados e faltas injustificadas por parte dos defensores, horários de atendimentos conflitantes com horário médio de trabalho das mulheres e dificuldade de cumprimento de medidas protetivas, em função do despreparo policial/oficial de justiça”. Medidas protetivas são determinações judiciais para proteção das vítimas, como determinação de afastamento.
“Muitas vezes há a dificuldade no cumprimento das medidas porque o agressor não acha importante cumprir, acha que não pode gerar prisão ou não acredita nas implicações. Mas, por outro lado, não é possível fazer uma fiscalização constante e eficiente para todos Estados. Há inúmeros casos de femínicidio [assassinato de mulheres em razão do gênero] em que tinham medida protetiva. Não é a medida protetiva que vai garantir integridade e vida até porque não é possível colocar um policial na porta de cada mulher que tem a medida”, diz Cristiane.
Números da violência contra mulheres
De acordo com o Mapa da Violência 2012 (o mais recente), entre 1990 e 2010 foram assassinadas cerca de 91 mil mulheres – 43,5 mil só na última década. Em 30 anos, o número de assassinatos de mulheres cresceu 1.353 para 4.297, um aumento de 217,6%. Com taxa de 4,4 mortes para cada 100 mil mulheres mortas, o Brasil ocupa a 7ª colocação entre 84 países. O primeiro é El Salvador, com taxa de 10,3 mortes para cada 100 mil mulheres.
Em 2010, o Espírito Santo apresentou taxa de 9,4 homicídios para cada 100 mil mulheres e encabeça a lista dos Estados onde a mulher corre mais risco de morrer. O ranking indigesto é composto ainda por Alagoas (8,3 mortes para cada 100 mil) e Paraná (6,3).
O Mapa aponta ainda que no ano de 2011 o País registrou 73.633 atendimentos relativos a Violência Doméstica, Sexual e/ou outras Violências. Deste total, 48.152 (65,4%) eram de mulheres e 25.481 (34,6%) de homens. “Praticamente duas em cada três pessoas atendidas no SUS nessa área são mulheres”, diz o relatório.
Além disso, o Mapa da Violência indicou ainda que 68,8% dos casos de feminicídio aconteceram dentro de casa. Em relação aos casos de agressão contra mulheres entre 20 e 49 anos, o levantamento indicou que em mais de 65% deles os responsáveis eram parceiros ou ex-parceiros.
Em março deste ano, a presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou a lei do Feminicídio, que prevê penas mais duras para casos de assassinatos em razão do gênero.
Fonte: iG