“27 Noites”, dirigido e estrelado por Daniel Hendler, é um desses filmes que precisam ser assistidos com o coração. Inspirado em fatos reais, o longa argentino mergulha no delicado território entre loucura e liberdade, questionando com coragem o que é, afinal, “normal” num mundo que teme a velhice e aprisiona o que não compreende.
Martha Hoffman, vivida com rara intensidade por Marilú Marini, é uma mulher de 83 anos, exuberante e irreverente, dona de si e da própria alegria. Suas filhas, assustadas por seu comportamento pouco convencional, decidem interná-la compulsoriamente numa clínica psiquiátrica. Assim, o filme expõe a dor silenciosa do controle travestido de cuidado, revelando o quanto o amor, quando guiado pelo medo, pode se tornar uma forma sutil de violência.
Durante o processo, Martha é observada por Leandro Cassares, o psiquiatra nomeado perito pela Justiça, e encarregado de avaliá-la. Ele é um homem distante, metódico e solitário, alguém que parece ter se exilado das emoções. No entanto, ao se aproximar de Martha, vê-se desarmado por sua lucidez e por sua inquietante leveza. Ela o desafia a rever seus conceitos sobre loucura, doença e liberdade. Aos poucos, a mulher considerada “excêntrica demais” ensina ao perito o valor de simplesmente ser.
Com delicadeza, o filme aborda o etarismo e a perda de autonomia na velhice, desmontando o preconceito de que envelhecer é sinônimo de apagamento. Martha é uma chama viva que insiste em iluminar o próprio caminho. Sua vitalidade afronta a rigidez do sistema e provoca o espectador a refletir sobre o quanto a sociedade ainda tenta domesticar o espírito humano sob o pretexto da razão.
A história é inspirada na vida real de Natalia Cohan de Kohen (1919–2022), artista plástica, escritora, mecenas e colecionadora argentina de trajetória quase mítica. Formada em Letras, estudou arte em Buenos Aires e Londres, foi autora de livros como Cortes transversales e Todas las máscaras, e dirigiu a Fundação Argentia de Ciência e Cultura, incentivando jovens artistas e intelectuais. Aos 87 anos, Natalia foi internada compulsoriamente por suas filhas, sob alegação de demência, após propor a criação de um centro cultural em Buenos Aires. O caso ganhou grande repercussão na Argentina: os laudos médicos foram contestados, e amigos denunciaram a internação como um ato de poder e silenciamento. Após forte mobilização pública, ela recuperou a liberdade e sua história inspirou o livro Veintisiete noches, de Natalia Zito, e, posteriormente, o filme de Hendler, hoje disponível na Netflix.
Tecnicamente, “27 Noites” é uma pequena joia de sensibilidade. A direção de Hendler aposta na observação: a câmera é paciente, silenciosa, quase cúmplice. A fotografia, em tons neutros e luz difusa, reflete o limiar entre sanidade e isolamento, enquanto a trilha sonora sussurra mais do que declara. Marilú Marini entrega uma atuação poderosa, cheia de nuances, capaz de alternar riso e desespero com um olhar. Hendler, como ator, oferece a contraface ideal: um homem racional que aprende, pouco a pouco, a sentir.
No final, “27 Noites” nos devolve à pergunta essencial: quem é, de fato, o louco? aquele que se recusa a viver preso às convenções, ou quem acredita que liberdade é algo que pode ser concedido por decreto? Martha Hoffman e, por trás dela, Natalia Kohen, nos mostra que a sanidade, muitas vezes, é apenas uma gaiola bem pintada. E que há uma sabedoria profunda em rir, dançar e viver, mesmo quando o mundo insiste em nos chamar de insanos.
Talvez a verdadeira loucura seja viver sem paixão, aceitar a velhice como sentença e não como conquista. Martha Hoffman, com sua alma indomável, nos recorda que a vida não precisa de permissão para ser vivida, ela apenas pede coragem.
E, quando o mundo tenta nos enquadrar, talvez o mais sensato seja o gesto de Martha: abrir a janela, respirar fundo e rir daquilo que os outros chamam de desvario, porque há uma forma de sabedoria que só os livres, e os “loucos”, conhecem.
Afinal, talvez a verdadeira lucidez esteja justamente em não ter medo de ser feliz.
Vale a pena assistir e refletir.

Olinda Altomare é magistrada em Cuiabá e cinéfila inveterada, tema que compartilha com os leitores do Circuito Mato Grosso, como colaboradora especial. @aeternalente
Foto Capa: Reprodução/Divulgação


